Adolescência | Mathias de Alencar
- Silvio Carneiro
- há 5 dias
- 6 min de leitura

O grande escritor russo Fiódor Dostoiévski, sobre quem diversas vezes destaquei seu esmero em produzir tipos tão complexos quanto impossíveis de, ao final, pertencerem àquela simplicidade imaginada pelo próprio conceito de tipo (como os de jogador, o duplo, o idiota, etc.), compôs um desses tipos, obra de maturidade pouco reconhecida, em um romance complexo intitulado O adolescente. A angústia do leitor segue aqui cada surpresa na qual Arkadi Markarovitch se percebia feito de trouxa, sempre o último a saber das coisas, numa ingenuidade algo terrível, porque desenhada entre o cão e o lobo, uma bela expressão francesa conservada na poesia do outro grande mestre russo, o poeta Aleksandr Púchkin, para dizer sobre essa espécie de estado intermediário no qual transitam as crianças de ontem e os adultos de amanhã.
O terrível dessa transição, que imprime à fase da adolescência também o seu frescor diante de um mundo caduco, está, para Dostoiévski, na fixação juvenil por uma ideia, espécie de último suspiro para uma civilização em declínio, perdida em sua fluidez. A ideia fixa, como força e fraqueza juvenis, destaca-se também em Jamie, sobre quem incidem as câmeras em Adolescence (2025), na autoimagem depreciativa que faz de si mesmo a partir da leitura que pensa correta pelo olhar dos outros sobre ele. O crime como resposta impensada de uma ideia fixa é sem dúvidas o mais absurdo dos destinos humanos — em um adolescente, é a certeza de que o frescor da juventude perdeu, ela também, seu último suspiro.
Para chegarmos ao terrível dessa conclusão, é necessária uma atenção especial à estética de Adolescence. E não me parece que seu efeito esteja apenas na genial tomada única (técnica conhecida como plano-sequência), que provoca no espectador a tensão de percorrer as veias abertas da loucura, da desrazão de um mundo que muitas vezes não percebemos que é o nosso. Eu particularmente me senti impressionado pelo modo como a dinâmica cênica, em que a câmera segue o fluxo das personagens sem jamais perder o fôlego, descentraliza o esforço das atuações (particularmente brilhantes em alguns casos) numa espécie de ping-pong, passando a bola a partir da criação de um fio de atenção sucessivamente deslocado para os diferentes protagonistas (a única exceção de foco em personagens está numa tomada aérea ao final do segundo episódio), dando voz ao que o título da série sugere: adolescência como um período de transição, sutilmente ligado por um fio frágil que constitui, no fim das contas, a invisível e inconfessável articulação entre o que fomos e o que seremos. E aqui, não está em questão apenas o destino individual de Jamie, de seus amigos e de seus pais. Está o de todos nós.
Digo isso não apenas por força de expressão. A tomada de foco da câmera, privilegiando quase sempre as expressões faciais e a emoção contida em cada diálogo, envolve o espectador numa tomada de consciência sobre o quanto estamos à deriva, desgastados por rotinas estressantes, impedidos de prestar atenção aos sinais que os outros nos deixam. A câmera nos convida a essa atenção sobre o outro, sobretudo quanto àqueles (adolescentes) que, saídos de nosso campo de cuidado pela relativa autonomia que assumem, não parecem receber a atenção merecida, mergulhados em seus quartos a portas fechadas e abertos às influências digitais. O último episódio, que acompanha o dia conturbado do aniversário do pai de Jamie, encerra com o foco sobre a cama vazia, aquela mesma da qual o garoto é retirado à força acusado de assassinato, no eletrizante primeiro episódio, destacando sua ausência ao final, no fundo, como a consequência de todo o abandono sofrido por ele no próprio lar. Há inúmeras falas que eu faria questão de destacar para ilustrar o que digo, mas nada substitui de modo eficaz a experiência de ouvi-las pela boca das próprias personagens, em seu drama específico. É preciso ver e rever Adolescence.
Por certo, o drama de Jamie não é o único, e sobre ele recai o enfoque maior em razão do crime cometido. Apenas ao final do primeiro episódio ficamos sabendo que o garoto de treze anos é acusado de matar uma colega de escola, Katie, sem que se saiba algo sobre as motivações do crime ou sobre o paradeiro da arma utilizada. No processo de investigação, a trama escapa, com uma destreza exemplar, dos tipos fáceis de construção de comportamentos: não há mocinhos nem vilões, não há famílias disfuncionais nem doenças psíquicas; há apenas a crueza das relações, e a compreensão algo fluida (porque jamais encerrada numa conclusão evidente) quanto ao que leva alguém a agir contra a vida de outra pessoa.
E é aqui que me reservo o direito de ser desmedidamente enfático para elogiar o terceiro episódio da série, de longe o melhor deles, todo construído sobre a interação avassaladora do garoto Jamie e da psicóloga Briony, nas atuações fenomenais do estreante Owen Cooper e de Erin Doherty, respectivamente. Creio ter sido essa cena uma das mais intensas que já assisti, talvez a mais emblemática em tudo aquilo que ela carrega de irresistivelmente simbólico, para a trama e para a nossa compreensão do que está em jogo nos valores culturais atualmente celebrados com ações que os ratificam seja por mero hábito, seja por indignação.
A indignação do jovem Jamie se manifesta em meio à revolta de uma ideia fixa que assume, na superfície, a convicção quanto à própria feiúra ou desinteresse por parte das garotas, mas que encontra sua raiz naquela ausência de significação em ser alguém fora daqueles padrões de masculinidade assumidos como desejáveis pelo pai e pelos amigos. E aqui observamos a minissérie abordar um dos maiores dilemas das últimas gerações, desencadeado pela posição feminista que questiona e repudia os tradicionais papéis femininos: o que se espera dos homens? Convenhamos, ninguém que compartilhe do ocaso daqueles papéis burgueses sabe ao certo responder a essa questão, e o drama de Jamie, um garoto sensível que mutila parte de sua subjetividade para se adequar ao que se esperaria dele, é no fim tornar-se presa fácil dos apologistas de ideários misóginos, que atualmente povoam a internet e os celulares de jovens e adultos, ocupando um espaço esvaziado pela incompreensão. Mais do que drama, por certo — assistimos à tragédia de uma vulnerabilidade levada ao limite da violência, potencializada pelos declives desse espaço efervescente em que, muito já se disse, as disputas por aceitação e afirmação de si, contidas no tempo e espaço da escola, se estende agora para o espaço sem limites das mídias sociais, um tipo de bullying intermitente que prossegue e persegue, adentra o mais íntimo das vítimas, corrói sua privacidade nos quartos já então impossíveis de manter suas portas fechadas.
Após o crime, nada mais está trancado, ou fechado numa interpretação única. Mesmo o vídeo de Jamie esfaqueando Katie pode ser posto em dúvida pelos advogados. No segundo episódio, a melhor amiga de Katie acusa o amigo de Jamie, Ryan, pelo assassinato. Terá sido apenas por raiva e maneira de dizer? A trama não esclarece. Ficamos sabendo que Ryan, mais sagaz do que aparenta, evasivo em suas repostas e reações aos policiais, era o dono da faca utilizada no crime. E o que dizer do terceiro amigo deles, que juntos sofriam bullying e que nada diz sobre o ocorrido, por ordem dos pais? Na avaliação final da psicóloga Briony, seria Jamie mesmo culpado? Teria ela entendido a maneira de o garoto entender as coisas? Qual terá sido o desfecho do julgamento, que a série não mostra?
Cito todos esses detalhes para indicar o que reputo ser um efeito narrativo no mínimo alucinante: a minissérie não soluciona absolutamente nada, a trama faz questão de deixar todas as pontas soltas, o que confere aos 4 episódios uma densidade angustiante e provocativa. Ou seja, é uma aula de técnica narrativa. E nada sendo conclusivo em Adolescence (sequer conseguimos dizer com certeza a quem caberia o xingamento pixado na Van do pai), é como se a série ela mesma fosse um fio solto em meio ao número cada vez maior de casos similares aos de Jamie e Katie, dos quais não temos certeza nem como começam nem quando chegarão ao fim — e com isso somos dispostos, por um efeito estético aterrador, como meros adolescentes diante de uma realidade absurda.
Não admira, portanto, que a minissérie, produzida pela Netflix, tenha obtido tamanho sucesso internacional de público e crítica em tão pouco tempo: há apenas oito dias de seu lançamento, esteve no top 1 de mais de 70 países, e não parece exagerado dizer que as premiações ainda serão muitas. Entre as causas do sucesso, tem sido muito destacado a atualidade e a abordagem do tema e a qualidade nas filmagens e atuações, mas tentei apontar o que acredito existir na série de mais profundo — isso que une forma e conteúdo de maneira indissociável, como se nós, espectadores, estivéssemos sob o mesmo efeito de transição dessa instância adolescente, quando nada se pode saber com certeza, quando as ideias fixas são um perigo, e de verdadeiro sobra o que dói e angustia.
Como fizera Dostoiévski em sua obra, atravessamos essa fragilidade e confusão juvenis sob a tensão da violência e do amor, como duas pontas soltas no modo de ser indefinido que configura essa fase da vida, de sujeitos tão dependentes quanto revoltosos. Se a angústia em assistir Adolescence nos deixa em estado de suspensão, é porque suspeitamos que não podemos nos ausentar da vida de nossos filhos e alunos, sem oferecermos a eles aquilo que o mestre de Arkadi Markarovitch lhe oferece como reflexão final:
“Há muitos rapazes como você, cujos dons realmente ameaçam desenvolver-se para o pior ou para a subserviência, ou um desejo oculto de derrubar o status quo. Mas esse desejo de derrubar o status quo provém, no mais das vezes, de uma sede secreta de ordem e ‘nobreza’”
(Dostoiévski, O adolescente. Trad. Paulo Bezerra – Editora 34, 2015).
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