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Agora eu vou contar | Ori Fonseca

  • Foto do escritor: Silvio Carneiro
    Silvio Carneiro
  • 3 de ago. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 6 de ago. de 2024




Para o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, a música é a suprema das artes, sendo a reprodução da própria Vontade. Para o poeta Aroldo Pedrosa, também. Mais: para Aroldo, tudo na natureza tem sua gênese na música. Isso foi o que depreendi de uma conversa que tivemos em meados dos anos 1990, na cidade de Itaituba, no Pará, em uma mesa de bar às margens do rio Tapajós, numa madrugada em que a filosofia era de deixar Schopenhauer de queixo caído. Não sei se Aroldo se lembra dessa conversa e se ainda pensa da mesma forma para a origem das coisas. Sei que eu me vali do meu estado etílico para propor minha teoria também. Segundo aquele filósofo de birosca, tudo tinha sua origem na Matemática, pois em tudo há contagem, cálculo, medida. Sóbrio, continuo pensando da mesma forma. Aroldo argumentava que a música está no canto dos pássaros, no choro primordial dos bebês, no assovio do vento. (Após ouvir Lacrimosa Dies Illa, não só se fica convencido de que o Tudo teve origem musical, mas que o Criador desse tudo foi Mozart). A questão é que os artistas, sobretudo os brilhantes como Aroldo, tendem a achar que tudo de bom tem seu nascimento na arte. Eu, como não tenho nada a ver com isso, contra-argumentava dizendo que a música nada seria sem a Matemática, pois os compassos, os ritmos, as notas e acordes são escravos da contagem. Ademais, não consta no Gênesis que Deus cantarolasse alguma canção enquanto criava o Universo, mas consta que Ele contava os dias para acabar logo com aquilo para poder descansar. Eu puxava a brasa para a minha sardinha, uma vez que era professor secundarista de Matemática naquela época. Devo dizer que já não ia muito com a cara de Schopenhauer desde que li dele que “a mulher é uma criatura de cabelos longos e ideias curtas". Então ficou fácil me contrapor a ele. Quanto ao meu amigo poeta, foi mais difícil, já que concordo com ele em quase tudo.


Eu sou controlador de voo há mais de três decênios. Na época daquela conversa sobre o berço do Tudo, além de professor, eu trabalhava na torre de controle do aeroporto de Itaituba (quando ainda havia torre de controle em uma cidade que está quase sem aeroporto). Nessa atividade, os números aparecem em abundância: na numeração das pistas, na direção e velocidade do vento, na pressão atmosférica, na visibilidade, no teto etc. E nessa atividade, como na de professor de Matemática, trabalham juntas duas das minhas grandes paixões, os números e as palavras. Fiz minha graduação em Letras porque amo matemática. O estudo de uma língua requer um conhecimento lógico apuradíssimo, requer contagem, requer cálculo. A Literatura também se vale da minha amada matemática. De vez em quando, me aventuro em escrever uns poemas despretensiosos que me fazem mais calcular do que argumentar ideias. Aí vêm os sonetos com suas estrofes contadas, com seus versos contados, com suas sílabas e ritmos contados. Aí vêm as quadras, as sextilhas, as oitavas, odes, rondós, trovas, tudo muito bem contadinho. Porque a língua é matemática. O pensamento linguístico é matemático. A fala é matemática.


Dito isto, chego aonde queria chegar, a importância da língua enquanto determinante para o pensamento e comportamento humanos. Recentemente, li uma entrevista com o linguista Caleb Everett, que em seus livros Numbers and the Making of Us: Counting and the Courses of Human Cultures (“Os números e a nossa formação: a contagem e o curso das culturas humanas”, em tradução livre) e A Myriad of Tongues: How Languages Reveal Differences in How We Think (“Uma miríade de línguas: como as línguas revelam diferenças na forma como pensamos”, em tradução livre) propõe que “a língua que falamos determina como pensamos”. Nascido nos Estados Unidos, Caleb é filho de um ex-missionário que veio para o Brasil nos anos 1970 com a missão nada santa de converter indígenas ao cristianismo e traduzir a Bíblia para o idioma pirahã, uma língua falada hoje por cerca de 300 indígenas no estado de Rondônia. A Flecha saiu pela corda. O pai de Caleb, Daniel Everett, acabou ele sendo convertido e se apaixonado pela língua a ponto de cursar um doutorado em linguística na Unicamp. Os Everett, pai e filho, são opositores do também linguista Noam Chomsky. Chomsky, um dos intelectuais que mais admiro, tanto por seu estudo linguístico como por seu posicionamento político, crítico que é do capitalismo colonialista de seu país, os Estados Unidos, propõe o conceito de “língua universal’, em que a linguagem humana se desenvolve a partir de uma estrutura comum, independentemente do lugar onde atue o falante.


Caleb, por sua vez, sob clara influência do pai, sugere que o comportamento humano é condicionado pela língua e que, portanto, não haveria por que falar da recursividade de Chomsky. Caleb afirma que, à medida em que os falantes perdem interesse em suas línguas maternas, pelos mais diversos motivos, mas principalmente por questões econômicas, a sua maneira de ver o mundo se modifica. O linguista toma como exemplo a ideia de cheiro em diferentes grupos de falantes. Muitos desses grupos usam diversas palavras para se referir ao cheiro. Com a morte dessas línguas, esses conceitos também morreriam, pois não haveria como representá-los em um idioma diverso.


Mas que diabos quero eu, tornando um texto que deveria ser leve em quase um sisudo tratado científico? Quero reafirmar que a minha amada Matemática está, e muito, entranhada no milagre lindo da linguagem humana, como, aliás, em tudo que pertença à natureza. Segundo os linguistas, há cerca de 7.400 línguas faladas no mundo. Muitas delas agonizando com um número reduzidíssimo de falantes. A ideia de contagem nessas línguas é tão diversa como diversa é a cultura dos grupos que as falam. Há línguas, como o pirahã, apresentada acima, que não possuem números precisos. Outras, que apresentam apenas dois tempos verbais, o futuro e o não-futuro. Por outro lado, há outras que têm até sete tempos verbais.


Mas é a relação que temos com a contagem (medida de tempo, de espaço, de temperatura, a quantidade dos peixes, das ocas, das pessoas) que determina como nos comunicamos através da língua falada e não o contrário. Arrisco em dizer que a criação da linguagem entre as pessoas se deu pela necessidade básica de contar. Lá no Big Bang, há quase 15 bilhões de anos, o tempo não existia, o espaço não existia, tudo estava amalgamado numa sopa cósmica onde, em um ponto minúsculo, uma massa descomunal comportava tudo o que existe no universo. Mas mesmo nesse caos do Gênesis, já havia a contagem para que o Princípio acontecesse. Quase 15 bilhões de anos depois, lá estou eu e o poeta Aroldo Pedrosa filosofando à beira do Tapajós quem é o ovo e quem é a galinha em nossas teorias da Origem.


Para ilustrar esta paixão que tenho pela Matemática e pela Língua Portuguesa, compartilho aqui um soneto escrito recentemente e que aborda essa coisa da contagem. Tudo contadinho. Cada palavra de cada decassílabo.


    


Nem mesmo os sete dias da semana,

Os seiscentos e treze mandamentos,

Os zilhões de estrelas dos firmamentos

Preenchem o vazio da dor humana.


Nem a matemática cartesiana,

As quatro estações, os quatro elementos,

A eternidade, todos os momentos

Salvam o espírito que a dor profana.


Em que prato o sofrimento é pesado?

Qual a equação pra um coração aflito

Solucionar o seu próprio conflito?


Mas o sofrer não pode ser contado,

Que a dor de um coração angustiado 

É um limite tendendo pro infinito.

8 comentarios


Invitado
06 ago 2024

Orivaldo Fonseca é um grande poeta, e agora, escrevendo em prosa, mostra que também é grande cronista. Meu amigo de algumas décadas. O conheci em Itaituba, no Pará. Somos contemporâneos, um golpe de sorte na vida sermos brasileiros nascidos na Amazônia, numa mesma época. E me recordo, sim, das nossas conversas regadas sempre por umas boas cervejas num barzinho de cores vivas inesquecível, criado pelo artista plástico Hostyano Machado. E - como se isso só não bastasse - às margens do belo rio Tapajós, que banha Itaituba. De memória precisa, um virtuose da literatura, Ori com "Agora eu vou contar" me emocionou muitíssimo na estreia da coluna com tão luminoso texto. Sem dúvida que ele trará, através de sua literatura…

Editado
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orifonseca
06 ago 2024
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Meu amigo, muito obrigado pela leitura e pelo comentário!

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Invitado
04 ago 2024

Uau! 👏👏👏👏


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orifonseca
06 ago 2024
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Muito obrigado!

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Invitado
04 ago 2024

Orivaldo, um grande poeta 👏👏👏👏!!!

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orifonseca
06 ago 2024
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Muito obrigado pela leitura e pelo carinho!

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Lulih Rojanski
04 ago 2024

Magistral a estreia do querido Orivaldo! Com contribuições tão boas, O Zezeu não para de crescer!

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orifonseca
04 ago 2024
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Sou eu que agradeço pelo espaço, Lulih querida.

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