Esses primeiros dias iniciais de dezembro têm sido ricos de aprendizado. Não só aquele que vem do outro, inevitavelmente. Estou em uma comunidade de assentamento quilombola no interior do Amapá, e a tarefa de trazer a filosofia para dialogar com professores em formação, sempre desafiadora, traz ainda um retorno gratificante, ao reconhecer nossa semelhança nas diferenças. Mas há um aprendizado que tenho obtido à porta fechada do quarto em que durmo, numa pousada: a solidão faz cair a ficha sobre algumas escolhas que fazemos, ou que evitamos fazer, mas sobretudo, ela nos dá uma maior atenção. Não ter ninguém por perto, para muita gente, pode ser um inferno, ou um paraíso. No meu caso, se aprendo cada vez com mais intensidade que ninguém sobrevive sem uma comunidade, sem depender minimamente do que o outro faz e pode nos oferecer, aprendo também que é preciso, cada vez com mais frequência, estarmos a sós conosco. O efeito de estar atento aos detalhes é a melhor coisa que se pode aprender em isolamento – claro, se você não passar o tempo todo de cara com o celular.
Para ilustrar o que digo. Hoje me dei conta de uma pequena parte na parede do quarto que estava pintada com uma outra cor de tinta, e que eu não havia percebido desde que cheguei, há três dias. Não sei vocês, mas para mim é aterrador sempre que me dou conta de que eu via mas não enxergava. Tenho problema de vista, é verdade, e foi um êxtase na vida a primeira vez que pus uma lente de contato que, diferente dos óculos, me fez enxergar como nunca até os mínimos detalhes. Mas não é disso que falo. Digo de me perceber tendo olhado diversas vezes o mesmo lugar, a mesma parede, e não ter percebido que ali havia algo até então nunca visto. Olhar é diferente de ver, é sobre isso que falo. Às vezes nosso pensamento vai tão longe que ficamos olhando para o nada, com um olhar vago e impreciso. Às vezes, olhamos muito para uma só coisa, e não percebemos o contexto, o todo da coisa, não nos damos conta do que está em volta, e que não raro faz toda a diferença para ver melhor o que insistimos em olhar só os detalhes. Às vezes, por fim, um olhar de paisagem, panorâmico, não dá conta de observar aqueles detalhes que fazem a diferença para enxergar o que se vê. Mas nenhum desses casos explica o fato de ver e não ver de fato, como acontece no experimento do jogo de basquete.
O que aprendo, mais uma vez, e de maneira sempre renovada, e assustadora, é que tudo não passa de um problema de visão – e agora vocês enxergam de qual problema eu estou falando. Não saber ver é não prestar atenção, é se deixar levar pelo fluxo das impressões que nos chegam de fora, sem a devida calma para eleger o que há de mais importante. Temos sido, em muitos quesitos, uma sociedade avessa aos critérios para eleger o que é o melhor. Mas sabemos bem que não é possível dar importância a tudo o que nos chega, é humanamente impossível ser atencioso em tudo que exige e espera de nós dedicação aos seus detalhes. E então nos enganamos com a ideia de que todo mundo pode receber o mesmo tipo de atenção de quem quer que seja, desde um familiar até algum tipo de política pública. É duro aprender a lição, mas nem tudo é para todos. O papel da lei diz uma coisa, mas a prática é outra: é o que ouço muito dizer por aqui ou em todo lugar onde nos deparamos com esse monstro aterrador chamado realidade. E não é só por sermos cultura, e não apenas natureza, que seremos capazes de alterar essa nossa condição atencional tão restritiva, e excludente.
A literatura tem muito a nos ensinar sobre isso. Sobretudo porque o ato de ler exige atenção, para não acabarmos passando os olhos pelas letras e pensando em outra coisa (já aconteceu com vocês, tenho certeza). Mas há uma atenção na leitura que está em saber ler nas entrelinhas, no não dito, na resistência do que não se dispõe à compreensão. Quando penso em modelos de leitores, para mim, eles acabam se mostrando, inevitavelmente, como modelos de escritores. Eu deveria render aqui minha homenagem ao grande Machado de Assis, patrono dessa coluna e de parte considerável da minha confiança nas palavras em língua portuguesa. Preciso dizer, porém, que nunca aprendi a me tornar o que sou, a me reconhecer como filósofo, escritor e leitor, com ninguém mais senão com F. Nietzsche, essa potência de leitura em forma de livros. Mesmo só chegando a conhecê-los por tradução (ainda bem, temos o Paulo César e suas traduções sempre tão cuidadosas e ricamente literárias), a argúcia das leituras nietzschianas se tornaram para mim um aprendizado inesquecível, ao produzir o efeito duradouro de uma nova forma de ver, de me atentar para certos modos de expressão, de articular perspectivas e de eleger o que mais importa, um tipo de leitura suficiente para acender a pólvora que explode toda aquela timidez e indiferença à arte e à vida, que nos domina até sermos sacudidos para experimentá-las com a devida atenção.
Pois então, foi lendo (quase toda a obra de) Nietzsche que me formei, antes de tudo, leitor. Mas em Nietzsche serei grato, sempre, por sua paixão pelos clássicos, pela sua devoção aos gregos. Nossa época, pronta a repudiar aquele eurocentrismo danoso que encontramos por aí, tende a jogar fora toda vez a criança junto com a água do banho. Não se trata (ou não se deveria tratar), absolutamente, de repudiar os clássicos. Seu traço formador da nossa cultura é inegável, e temos muito ainda a aprender com eles, assim como temos a aprender com as culturas até então marginalizadas no cenário intelectual, como a dos povos originários e a africana. A potência criadora, e algo antropofágica, da posição brasileira no mundo nos permite transitar por essas diferentes abordagens do mundo e de nós mesmos, em vista de produzirmos a sempre renovada posição que melhor nos situe frente aos desafios da vida em comum. E o poder criador daquele plantio, feito em terras gregas, chega até nós com uma jovialidade inconfundível, capaz de tecer destinos e encantações. Quem me conhece sabe de meu encanto por Sócrates, o exemplo maior de prática filosófica como arte do diálogo. Mas esse encanto aparece, inevitavelmente, vinculado a leitura dos que nos falaram sobre Sócrates. Entre eles, o irresistível Platão.
É comum vermos, todo fim de ano, as famosas listas de leituras, de livros, de planos e metas a nos atormentarem para o próximo ano. Não sou nada devoto de listas, mas se tivesse que eleger os cinco livros que eu levaria para uma ilha deserta, a fim de conservar algo da humanidade em minha solidão, República de Platão estaria entre eles. Costumo dizer em aula que esse livro não é apenas um repositório do que de mais fundamental se encontra na cultura grega e, claro, no próprio Platão. República é o mais desafiador dos livros, sobre as implicações de se realizar a filosofia como arte, como ciência, como política. E mais ou menos ao centro desse livro, logo ao início do capítulo VII, encontramos a mais bela imagem desse desafio, condensada em uma cena famosa sobre nossa condição educativa: a alegoria da caverna. Costumo dizer em aula que temos aqui ao mesmo tempo a origem e o destino da atividade digna de receber o nome de filosofia. Quem já leu o trecho, lembra de que a saída da caverna, algo extremamente doloroso, é um processo de aprender a ver. Apenas quem sai da caverna reconhece o lugar onde nasceu, a cultura onde aprendeu as coisas, e a limitação inevitável de quem permanece sob os mesmos efeitos de sentido, sob as mesmas configurações de destino. É fora da caverna que conseguimos ver, com um novo olhar, aquilo que sempre esteve ali diante de nós, mas que só se deixa ver quando prestamos atenção, quando nos chama a atenção o contraste entre o dentro e o fora da cultura, e da nossa vida.
Tudo é um problema de visão – ensina a filosofia, e também a solidão de um quarto, e um livro na mão. Esse ano, devo dizer, aprendi a olhar mais atentamente para os processos, em vez de ansiar pela sua conclusão apressada. Os ciclos de início e fim de um ano são momentos rituais para nossa reflexão, dotados de um poder de significado que abriga nossas expectativas contra as tempestades da desilusão, desde que saibamos ver, observar os detalhes, compreender esse todo no qual estamos inseridos, e que só podemos mudar se mudamos nosso modo de olhar. E parte significativa desse reconhecimento, dessa ressignificação do que nos cabe ser no mundo, manifesta-se genuinamente através do sentimento de gratidão, o sentimento das almas grandes. Tudo vale a pena, dizia F. Pessoa, se a alma não é pequena. Essa magnanimidade, virtude dos que sabem ver além da mera aparência, além do imediato das coisas, acima de toda mesquinhez dos desocupados, essa magnanimidade é o efeito mais indelével da educação, entendida como esse sair da caverna de que fala Platão. Se na noite de réveillon observarmos bem o colorido dos fogos, em contraste com o céu escuro, talvez reconheçamos a intensidade do que significa ser grato, estar em festa pela vida, sem a timidez e a indiferença que constrange os mesquinhos a reclamar em vez de amar. No céu está o paradigma do que é preciso ver. Se tivermos atenção, o novo ano será bem menos novo do que será o nosso destino.
Comments