Direito e Literatura | Yagho Bentes
- Silvio Carneiro
- 1 de set. de 2024
- 6 min de leitura

Inicialmente, é necessário explicar que aqui não pretendo tratar do direito à literatura, mas sim da relação entre direito e literatura.
Esta relação é muito ampla e pode se dar de diversas formas. Podemos falar, por exemplo, sobre como a literatura de ficção influencia o direito e viceversa; também podemos falar sobre a filosofia do direito, que é uma espécie de literatura; podemos falar sobre a linguagem técnica do direito, sobre a codificação das leis, assim como de petições, denúncias, sentenças, enfim, tudo isso do mundo do direito que está relacionado à literatura e que liga ambos os temas.
Então a especificação do tema dentro deste tema já delimitado se faz necessária para uma exposição mais precisa. Por isso escolhi começar falando sobre a importância da leitura de literatura de ficção para aqueles que se pretendem operadores do direito.
Para isso, é importante começar fazendo uma abordagem sobre a Teoria dos Quatro Discursos Aristotélicos, que pode ser vista com mais profundidade no livro Aristóteles em nova perspectiva[1], onde verificamos que existem quatro tipos de discursos: poético, retórico, dialético e analítico.
Para os nossos estudos, vamos nos ater aos tipos poético e retórico.
O poético é aquele que fala das coisas que são possíveis, trabalhando a formação do nosso imaginário e nos abrindo a um mundo novo de possibilidades. Ele tem a força de gerar na mente humana a simulação de uma experiência real e formas de ação e reação.
O ser humano não é capaz de viver todas as realidades, nem de viajar para todos os lugares ou de conhecer todos os tipos de sentimentos. A nossa experiência direta, aquilo que nós vivenciamos na prática, é limitada diante de toda possibilidade de experiência humana. Diante disto, a literatura é o melhor meio para que nós possamos compreender as diferentes realidades, as diferentes formas de sentir, de lidar, de agir e reagir frente a certas situações e circunstâncias.
Isso traz para o operador do direito um arcabouço maior e melhor sobre o qual refletir filosoficamente, seja na filosofia do direito ou na filosofia de modo geral; seja na interpretação e elaboração da norma jurídica e de políticas públicas. Quanto maior for a compreensão do jurista sobre a sociedade e a natureza humana, melhor será a sua capacidade de interpretar o direito. E essa compreensão ampla se adquire com o consumo de literatura de ficção.
Como exemplo de que o discurso poético da literatura nos abre para a compreensão do mundo das possibilidades, podemos citar, para além do aspecto religioso, o fato de que Cristo ensinava seus seguidores através de parábolas, contando histórias análogas àquilo que ele desejava que os outros entendessem. Essas parábolas abrem a imaginação do ouvinte para algo que vai além, algo transcendental que num primeiro momento estava inacessível à compreensão do espectador, mas que agora torna-se compreensível, pois, a imaginação fora fertilizada pela linguagem poética da parábola.
Cristo escolhe ensinar assim porque a linguagem poética é a que melhor se compreende quando se trata absorver as possibilidades.
Outro exemplo, trazendo agora para mais próximo da realidade do acadêmico de direito: não é incomum que, ao analisarem uma norma jurídica em sala de aula, algum aluno levante a mão e diga: “Professor, o senhor poderia dar um exemplo?”, e o professor conta uma história contendo um exemplo prático que facilite a compreensão. Ali, ele está fazendo uso da linguagem poética para abrir a mente dos alunos. Isso é o que se chama formação do imaginário.
A formação do imaginário é de extrema importância para a reflexão filosófica, sociológica e interpretativa do direito de forma saudável. Sem um imaginário bem formado, toda reflexão que for feita é como um estômago vazio que começa a digerir a si mesmo causando uma úlcera. A reflexão filosófica ou mesmo interpretativa do direito sem um imaginário bem formado é o mesmo que a digestão de estômago vazio, o que pode causar uma úlcera mental levando, inevitavelmente, à burrice e conclusões incorretas.
Sem essa capacidade imaginativa ampla nós acabamos por nos restringir a interpretar os outros e as outras realidades a partir da nossa própria, do nosso campo limitado de imaginação, não conseguindo conceber nem compreender motivações e atitudes diferentes das nossas. Em outras palavras, julgamos pela nossa própria régua, o que, mais uma vez, nos levará quase sempre a conclusões incorretas.
A linguagem poética da literatura de ficção pode nos ajudar, inclusive, a compreender a legislação de outros tempos sem cair em anacronismos. É o que acontece quando lemos, por exemplo, o livro Clara dos Anjos, de Lima Barreto, onde ele nos apresenta o personagem Cassi, um jovem mulherengo que possui extensa ficha criminal por ser um sedutor de mulheres virgens e casadas. Em nossa realidade moderna, a ideia de um rapaz deserdado pelo pai e com passagem pela polícia por ser um mulherengo é quase inconcebível; a ideia de que a sedução possa ser um crime chega a ser inacreditável para muitos. Porém, foi uma realidade jurídica passível de melhor compreensão através da linguagem poética da literatura de ficção, que retrata a época sem o anacronismo moral de analisar com os olhos dos tempos modernos.
Passando agora para outro ponto, além da importância do consumo de literatura de ficção para a formação do imaginário e a boa interpretação e reflexão da filosofia do direito, das normas etc., há também a importância de que o jurista trabalha com a expressão, com a linguagem. Sempre que um advogado, um promotor, ou o que quer que seja, precisa narrar os fatos em uma peça jurídica, ele faz uso de uma linguagem literária, e quanto mais leitura tiver, melhor será sua capacidade expressiva de contar aquilo que deseja.
Como jurista, seja advogado, promotor, delegado, enfim, não raras vezes se tem contato com pessoas que possuem dificuldade em se expressar, em contar suas próprias histórias. Infelizmente essa é uma realidade no Brasil, país onde se lê pouco. E, ao contrário do que se possa imaginar, essa dificuldade de expressão não está atrelada ao poder econômico. Não é incomum encontrar pessoas de alto poder aquisitivo que possuem dificuldade em se expressar. Em casos assim, o jurista precisa compreender a história, o sentimento e as necessidades daquelas pessoas e narrar o caso, seja numa petição inicial, num relatório policial, numa denúncia, ou o que quer que seja, de maneira a dar forma inteligível àquele acontecimento.
Um bom exercício para melhorar essa capacidade, além, obviamente, da leitura, é o exercício de emulação dos grandes escritores. Emular estes escritores em sua forma de escrever e de construir um texto tende a melhorar muito a capacidade narrativa; a capacidade de contar uma história e assim convencer o juiz, o júri ou quem quer que se precise convencer em uma manifestação jurídica.
O que nos leva, finalmente, ao tipo retórico de discurso.
O discurso retórico tem como objetivo convencer alguém a fazer algo. Esse é o principal tipo de discurso utilizado por advogados e promotores que buscam convencer o juiz a decidir a causa de determinada maneira. E aqui cabe uma explicação. Diferente do que se possa imaginar, o que define se um discurso é retórico ou poético não é a estrutura interna do texto, mas sim o objetivo humano por trás dele. O que o autor do texto objetiva alcançar com ele. Se deseja abrir a mente do leitor para as possibilidades, é poético, se deseja guiá-lo para uma decisão, é retórico.
Por exemplo: quando um advogado narra os fatos em sua petição inicial, essa narração tem uma estrutura de discurso poético. Ele está ali contando uma história de maneira parecida como são narradas em literaturas de ficção, mas seu objetivo ao narrar aquela história é de, no fim, convencer o juiz a tomar uma decisão a seu favor e por isso, por mais que tenha uma estrutura interna poética, aquele texto é, na verdade, retórico.
Um bom exemplo disso na literatura brasileira é o livro Os Sertões, de Euclides da Cunha[2]. Uma epopeia brasileira que narra uma tragédia real. Este texto conta de forma épica a grande batalha que aconteceu em Canudos quando a República brasileira assassinou os moradores daquela região.
O texto é dividido em três partes e começa falando sobre a terra do sertão nordestino, sua formação, suas cores, sua vegetação, seu clima. Na segunda parte ele fala sobre o homem, suas origens e influências (este trecho possui, inclusive, uma interpretação bastante determinista sobre o homem, o que era a ciência da moda no período) e termina narrando a guerra.
Por toda essa estrutura, um leitor poderia ser levado a imaginar que se trata de um texto poético, entretanto, como dito pelo próprio Euclides, o objetivo daquela narrativa era de denunciar os crimes cometidos pela República[3] e apontar os responsáveis para que fossem punidos. Sendo assim, a narrativa de Os Sertões é de tipo retórico, pois visa convencer o leitor a responsabilizar os autores daqueles crimes.
Podemos concluir, desta forma, que a leitura de literatura de ficção é de extrema importância para a formação do imaginário do jurista, permitindo uma melhor reflexão acerca da filosofia do direito, da sociologia do direito e melhor interpretação da norma. Além de dar ao jurista as ferramentas para exercer com excelência sua função narrativa.
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[1] Aristóteles em nova perspectiva – Introdução à Teoria dos Quatro Discursos, de Olavo de Carvalho. Vide Editorial. 2ª edição. Campinas-SP, 2013.
[2] Os Sertões, de Euclides da Cunha. 2ª edição. Jandira, SP. Principis. 2020.
[3] Os Sertões, Nota Preliminar de Euclides da Cunha: “Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo.”
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