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Foto do escritorSilvio Carneiro

Entre filosofia e poesia | Mathias de Alencar


Pretendo usar este espaço para pensarmos esse ano, uma vez mais, sobre a questão que mais me angustia, aquela que diz o principal motivo de eu permanecer (como se houvesse, de um lado, a margem segura da filosofia acadêmica e, de outro, a da arte literária) numa espécie de terceira margem à la Guimarães Rosa, embora de nenhum modo isso me deixe à deriva. Vocês devem se lembrar do conto de Rosa, em que um pai decide dar fim à vida permanecendo inacessível ao meio do rio, numa terceira margem que ele cria para si mesmo. Essa bela imagem é bastante apropriada para os que fogem dos extremos, aqueles para quem a vida é fluxo cuja possibilidade de durar está dentro de nós. Vejo em mim durar essa questão a que me referi, e que diz respeito ao valor cultural da poesia – qual afinal é o seu papel social? O que faz a arte poética, talvez a arte em geral, ser apreciada como uma conquista civilizatória, digna de ser cultivada ainda hoje, apesar de sua indigência no mercado dos livros, no cotidiano dos leitores? Em suma, que tipo de apologia pode (e deve) ser feita em favor do exercício poético, que não pareça resultar num esforço pedante ou numa indiferença inútil?

Quando digo que essa questão me divide, pela sua natureza angustiosa, fico surpreso de que ela seja tão antiga quando a origem da filosofia, marcando as duas atividades que escolhi para seguir meu percurso na vida. Quem nos conta sobre essa antiguidade é Platão, conhecido por expulsar os poetas de sua filosófica cidade ideal. Vocês devem se lembrar do caso: será expulso da melhor cidade todo poeta que não produzir, em sua poesia, formas de hino aos deuses e aos heróis valorosos, para que o cidadão não seja moldado por ações e valores degenerados. Na Grécia, poesia significava o principal meio de educação democrática, quase um sinônimo do que entendemos hoje por cultura. Se aprendemos com Platão a filosofar, por ele sofremos, nós poetas, de um mau-olhado cada vez mais violento. Logo ele, tido por filósofo poeta, como tantos outros na história das ideias! Qual, porém, foi o teor de sua denúncia? Eis a questão crucial. Entender sua crítica me parece decisivo, sobretudo para quem se vê, como eu, divido entre a loucura erótica do dizer e a do saber. Afinal, sabe bem o poeta o que diz? E o filósofo, diz bem aquilo que sabe? Eis a questão crucial, ao menos para mim – desculpem este pobre filósofo poeta, ou talvez poeta filósofo, ao lhes importunar com tudo isso.

A famosa expulsão de República se sustenta sobre uma premissa conhecida como teoria das ideias, na qual as coisas reais são entendidas como cópias das ideias eternas. Platão compara a poesia à pintura, por ser esta um tipo de símbolo da arte em geral: o pintor é aquele que produz sua obra feito cópia das coisas reais. Sendo estas também cópias, a arte estaria, portanto, a três graus afastada da realidade. Não é preciso dizer que esse tipo de explicação mimética tem algo que o próprio Platão reconhecia como problemático. O problema com a arte, no entanto, não parece ser bem compreendido se não aprendemos a ler a colocação da crítica platônica como um modo de denunciar a visão reduzida que muito artista tem de sua poesia, como se ela fosse, ou devesse ser, uma cópia das coisas, um exercício de imitação do real, tantas vezes reafirmado por movimentos como o naturalismo e o realismo. Trata-se, em poesia, antes de tudo, de espelhar o mundo das coisas, ou de transmutá-lo? Deve a poesia ser realista? Mais ainda, o que significa reproduzir o real pela arte? Não parece estéril uma arte que apenas duplica as coisas do mundo? A desconfiança platônica em relação à poesia aponta para uma alienação poética encerrada na tentativa sempre frustrada de fazê-la mais real que o real.

O crítico N. Frye (The Critical Path, 1974) chamou a atenção para um outro ponto da crítica platônica, ou antes, para um tipo de pressuposto que nos chegou desde República até o marxismo: aquele de uma moral do trabalho em que a arte se mede, e se critica, a partir do que é ou não socialmente valioso. O poeta estaria, em relação à realidade, mais alienado que o trabalhador. Só que, em República, tanto o trabalho quanto a arte são observadas pela perspectiva filosófica da educação: é preciso ser educado para bem realizar a ocupação social que nos cabe, e a arte, por sua capacidade de co-mover os cidadãos, no melhor ou pior dos sentidos, deve ser realizada sob a orientação da crítica moral, sob a finalidade de um bem comum assumido por uma coesão social de natureza racional. Para os que entendem a forma ideal de cidade em República como sendo um projeto político, e não educativo, fica difícil isentá-lo dos traços algo totalitários dessa proposta de controlar a cultura e a poesia. Creio, porém, que essa realização política não seja a melhor maneira de lermos um texto cuja motivação principal, ilustrada pela conhecida alegoria da caverna, está em nos ensinar a ver melhor.

Não é possível trabalhar aqui todos os pontos que tenho em mente para mostrar que República é, antes de tudo, um projeto de educação individual. Fiz isso num texto que indico aos que desejam aprofundar a questão. Aqui, me interessa entender de que modo essa proposta educativa nos leva a uma leitura do texto filosófico tomando sua natureza poética, ou seja, o efeito de sua arte para a orientação educativa a que se destina. Entendo que seja isso o que sua personagem Sócrates nos sugere, ao mostrar que a cidade construída pelo texto platônico serve para cada indivíduo como modelo de imitação, para que nossas ações se realizem, na cidade que for, como se vivêssemos na cidade melhor. Dispor um modelo de ação louvável é exatamente o que a arte boa, digna de permanecer na cidade, produz. Quando Platão faz seu texto criticar os poetas, é para mostrar de que modo o texto de República se constrói como a poesia mais louvável, não porque tenta imitar o real, mas o divino, ou seja, a ideia, o que há de eterno no intelecto e que se realiza, para nós, como uma segunda natureza possível.

Citei o teórico da literatura Frye porque aprecio o modo como ele (e outros e outras que acompanho de perto) reconhece nos antigos nossas questões imorredouras, aquelas sobre as quais, por incrível que pareça, ainda estamos a pensar. Desde Platão, a posição da crítica em literatura se impôs como teoria literária, para dar conta não só de situar as diferenças entre os gêneros textuais, mas sobretudo o tipo de efeito que o texto produz em seu público, bem como o lugar da arte a partir do juízo que se faça sobre a experiência estética produzida. É claro que, dada a forma como a poesia se realizava entre os gregos (por uma produção de espetáculo que tinha valor político, cultural e religioso decisivos, similar ao poder de influência de nossos meios de comunicação), está-se considerando, em República, o efeito da arte em geral, não só o da poesia, exatamente para poder analisá-lo sob o enfoque moral apropriado.

Contudo, se nosso esforço em ler os antigos se justifica pela intenção de entendermos melhor nossa própria época, soa estranha para nós a ideia de uma arte julgada moralmente, por não ser desejável, sob hipótese alguma, a censura e o repúdio. Geralmente, os que defendem a arte pela arte (depois dos parnasianos) dão mostras de reconhecerem o poder de influenciar que a arte possui, ainda que não aceitem qualquer forma de limitá-lo, mesmo a que se impõe pela quase sempre estéril classificação etária. Isso porque, mais uma vez, soa estranha qualquer censura à arte, pois sabemos que ela vale por sua liberdade. Somos já demasiadamente kantianos quanto a isso: o jogo das faculdades, como Kant entendia o processo estético criativo, dispõe a censura como uma limitação inapropriada do lúdico e livre fazer artístico. Ao reconhecer esse livre jogo, o esteticismo de um T. Gautier e de um E. A. Poe, por exemplo, desafia o tipo de interpretação filosófica interessada na condição educativa e moral da arte – ao preço, muitas vezes, de tornar a poesia devedora de um romantismo inútil. Afinal, mesmo o desinteresse, próprio ao juízo de gosto para Kant, contribui significativamente para o indivíduo reconhecer sua condição moral. Deve-se entender, então, a arte como sendo nada mais que um capricho para desocupados, um lazer para intervalos do trabalho duro (este único motor do progresso!), um entretenimento para aliviar o estresse e a ansiedade diárias? Não parece sem valor uma teoria estética que torne impossível, ou indesejável, afirmar que nem todo modernista é digno de apreço, como de fato não é?

Parte da grande crítica do século XX insistiu, ao contrário, em destacar a condição histórica e social da arte, seu compromisso e engajamento, a fim de acentuar (como fizeram, sob aspectos diversos, os filósofos G. Lukács e J-P. Sartre) o efeito de produção de consciência, à la Hegel, que torna a arte valiosa. Ocorre que, no interesse de evitar essa alienação formalista e subjetivista da arte pela arte, defendeu-se um tipo de literatura que retorna àquela condição realista denunciada por Platão como o traço alienante por excelência da poesia. Nesse jogo, quem está menos alienado? Um mundo científico e tecnicista como o nosso parece cada vez mais isolar o poeta da autoridade cultural que fazia dele, até um pouco depois da fase Renascentista, a reserva de palavra da vida em comum, para usar essa bela expressão de Frye.

É claro que há vários outros fatores envolvidos nesse exílio forçado da poesia, mas o modo como se entende a artesania do verso diz algo sobre uma responsabilidade social com esse destino poético? Mais ainda, pode a poesia voltar a ter uma parte, mínima que seja, da sua força de atração e de influência cultural? Talvez o caminho seja pensarmos a possibilidade de se encontrar um meio termo entre, por um lado, a gratuidade sem limites da arte pela arte e, por outro, a necessidade moral e política de delimitá-la. Seria possível permanecer assim, numa espécie de terceira margem do rio, evitando o naufrágio inevitável? Afinal, o que se espera da arte? E se não devemos nada esperar, que dignidade pode ainda reivindicar o artista, senão a de ser mal-olhado, como um luxo que rapidamente se torna supérfluo ao menor indício de instabilidade social? “A poesia nada sabe a respeito de progresso e conhece apenas a repetição”, Frye assevera. Quanto menos avanço tecnológico, mais força tem a palavra poética. Até quando a poesia continuará sendo mera repetição desse seu fim iminente?

Como tenho coragem de dizer ‘fim’, vocês me perguntam, se é notório que nunca se publicou tanta poesia quanto hoje? Farei de contas que a questão, depois de tudo o que eu disse, precisará ficar assim, ressoando irônica na mente de vocês, até provar por si mesma não haver mais razão nenhuma para respondê-la.


Rio de Janeiro. 04 de janeiro de 2025

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2 Comments


Alessandra Del'Agnese
há 3 dias

Entre filosofia e poesia,

há um rio que corre em segredo,

suas águas trazem o peso da razão

e a leveza do sonho desperto.


Na margem esquerda, o pensar:

preciso, metódico, insistente.

Na margem direita, o sentir:

livre, intuitivo, envolvente.


E a terceira margem?

Ah, não é refúgio nem fuga,

mas travessia.

Não é escolha que teme o naufrágio,

mas coragem de abraçar a fluidez.


É o abraço do mistério,

o instante em que o saber

se dissolve em contemplação

e o verso encontra o silêncio do ser.


Por isso, navegar não é perder-se,

mas tornar-se rio,

e descobrir que as margens,

por mais opostas que pareçam,

são apenas faces do mesmo infinito.

Alessandra Del'Agnese

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Cesar de Alencar
Cesar de Alencar
há 3 dias
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Que beleza de inspiração!

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