Sophia Pinheiro, em seu livro de estreia O Castigo de Eva, apresenta uma obra poética profunda e visceral, marcada por sua vivência como uma jovem mulher trans. Recém-assumida, Sophia atravessa o limiar de sua identidade com a força de quem renasce, e sua poesia reflete o conflito existencial e a dor que advêm dessa transformação. Dividido em quatro partes: "Gênesis", "A condenação", "Cânticos de Eva" e "Apocalipse", o livro reconstrói, de forma crítica e lírica, os principais mitos judaico-cristãos, reescrevendo a criação e a queda do homem a partir de uma perspectiva transgênero e dissidente.
Logo no início, em Gênesis, Sophia reinterpreta a história bíblica da criação do mundo como um reflexo de sua própria recriação: “nascia a borboleta no jardim do Éden” é a metáfora para a transição de Sophia, o momento em que sua verdadeira identidade começa a emergir. Aqui, ela questiona o papel de Deus, que a cria, mas também a coloca em uma prisão existencial ao moldá-la num corpo que não a reflete. O verso “meu Deus, por que me criastes? a Lua me entende e Tu sentes ciúmes” sugere um conflito entre o divino e o terreno, onde a autora busca na Lua, símbolo do feminino e da intuição, um conforto que a masculinidade divina não lhe oferece.
A criação divina, ao invés de um presente, se transforma em um fardo, como expressa no sexto dia: “a glória de nascer a condenação de viver”. A partir desse ponto, a poesia revela o cerne da experiência trans: a luta para ser reconhecida como quem se é, em um mundo que insiste em aprisionar Sophia no corpo e nas expectativas de um homem. A serpente, tradicionalmente vilanizada na Bíblia, aqui ganha um papel ambíguo, semelhante ao da própria transição: ao mesmo tempo que traz dor e ruptura, oferece a possibilidade da liberdade.
Em "A condenação", Sophia aprofunda essa analogia entre sua condição e o mito de Eva. No poema, ela inverte as relações de poder e revela que Adão, também uma travesti, não se libertou completamente, ao contrário de Eva, que “continuou em suas costelas”. Essa reescrita do mito evidencia a opressão de gênero e o aprisionamento nos papéis sexuais atribuídos desde o nascimento. A travessia de Sophia é marcada pela rejeição da sociedade e pela constante dúvida sobre sua própria identidade: “me chamaste de Eva mas me aprisionastes à força e ao desejo de teu filho”.
Essa tensão, entre ser e não ser, explode em "Cânticos de Eva", onde a voz poética emerge não mais como vítima, mas como uma resistente que desafia a própria criação divina: “eu sou a poesia escrita à mão a travesti que chamam de aberração e a perfeição feita da costela de Adão”. Ao escrever seu corpo trans como poesia, Sophia subverte as expectativas do gênero e da sociedade, conferindo uma dimensão transcendente à sua existência.
Contudo, em "Apocalipse", a obra revela o lado sombrio da resistência: a violência cotidiana sofrida pelas mulheres trans, que leva Sophia a falar sobre o apocalipse diário que é sobreviver em um corpo marginalizado. “Travesti, às vezes este é o teu apocalipse” denuncia a brutalidade do mundo exterior, onde a alegria e a resistência são frequentemente interrompidas pela morte, seja física ou social. Nesse sentido, o apocalipse de Sophia é uma constante ameaça de extinção: “expulsa de casa prostituta morta... nem imaginavas um tiro? não teu apocalipse!”.
O Castigo de Eva é uma obra poética densa, repleta de metáforas bíblicas e questionamentos existenciais. Através da releitura do mito de Eva, Sophia Pinheiro expõe sua própria experiência enquanto mulher trans que, ao assumir sua identidade, enfrenta tanto a beleza quanto o fardo de viver em um corpo que a sociedade insiste em interpretar de forma limitada. Sua escrita revela as feridas e os desafios que atravessam a trajetória de uma pessoa transgênero, mas também a esperança e a coragem de se recriar, de desafiar o próprio Criador e de afirmar sua existência como um ato de resistência.
Em um tempo em que a luta pela aceitação e respeito às pessoas trans se faz mais urgente do que nunca, O Castigo de Eva surge como um manifesto poético, onde Sophia Pinheiro grita por reconhecimento e liberdade, ecoando a voz de tantas outras Evas que, como ela, ainda lutam para se libertar do casulo que a sociedade insiste em lhes impor.
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