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O Clube da Torre | por Yagho Bentes

  • Foto do escritor: Silvio Carneiro
    Silvio Carneiro
  • 3 de ago. de 2024
  • 8 min de leitura


Eu tinha 11 anos em outubro de 2002 quando papai chegou do serviço. Era uma quarta-feira, início da noite.


Ele deu três batidas na porta antes de entrar, como sempre fazia, toc-toc-toc e eu imediatamente corria para recebê-lo. Quando chegava do serviço, papai tinha sempre um cheiro forte de suor impregnado na farda da polícia. Ele me carregava com um sorriso no rosto, beijava a mamãe e entrava para tomar banho.


De banho tomado, normalmente ia para a sala assistir ao Jornal do Amapá ou ia direto dormir quando estava muito cansado. Mas nesta quarta-feira ele tirou do bolso dois ingressos para o jogo do Ypiranga. Eu sempre quisera ir ao estádio, e ele sempre prometera me levar, mas até aquele momento, ainda não tínhamos ido.


— Hoje é a semifinal, — ele disse.


Tomei os ingressos nas mãos, comemorei, mostrei para mamãe que sorriu e me beijou, e depois me ajudou a me arrumar enquanto eu falava sem parar como seria legal aquela noite. Enquanto mamãe amarrava meus sapatos, contei a ela tudo que sabia sobre o Yipiranga: que era chamado de Clube da Torre em homenagem à torre da Igreja de Nossa Senhora da Conceição; que somos um clube fundado pela Juventude Oratória do Trem e pelo Padre italiano Vitório Galliani; que nossas cores são negro-anil porque o padre era torcedor da Inter de Milão e que nossa mascote é a Coruja por conta das corujas que habitam a torre da igreja. Só parei de falar quando papai me chamou para irmos, finalmente.


Nos despedimos de mamãe, entramos no Fiat Tempra 1998 do papai e partimos para assistir ao jogo que aconteceria no Estádio Milton de Souza Correa, também conhecido como Estádio Zerão. Havíamos acabado de dobrar à esquina da Leopoldo Machado com a Rodovia JK quando papai me contou uma curiosidade que eu desconhecia:


— Filho, sabia que a linha do Equador coincide com a linha de meio-campo do Zerão?


Fiz que não com a cabeça.


— Você sabe o que é linha do Equador? Já estudou isso na escola?

— Na escola, não, mas mamãe já me ensinou que a linha do Equador divide a terra em hemisfério norte e sul.

— Exatamente, e essa linha está junto com a do meio-campo, ou seja, um time joga no hemisfério norte e outro no sul. Legal, né?

— Sim — respondi. E realmente havia achado muito legal. Ainda mais sob a perspectiva de que um jogo de futebol é uma espécie de batalha campal, fazia muito mais sentido, tinha um ar muito mais lúdico, os guerreiros do norte enfrentando os guerreiros do sul. Para mim, era como assistir ao Francisco Xavier da Veiga Cabral (sul) lutando contra a invasão Francesa (norte) para proteger o território do Amapá! Batalha épica!


Mais adiante papai entrou à direita na Ivaldo Veras e, passando o Sambódromo, já estávamos no estacionamento do estádio. Ambulantes vendiam pipoca, batata, água e refrigerante enquanto as pessoas iam chegando para ver jogo que seria contra o Trem Desportivo Clube, a Locomotiva.


Apeamos, entregamos os ingressos na entrada, fomos revistados e autorizados a entrar. Papai entrou armado depois de mostrar a identificação policial. Subimos às escadas e escolhemos um lugar na arquibancada destinado à torcida negro-anil. Em pouco tempo estava tudo lotado, as vozes dos torcedores se misturavam numa balburdia sem fim, risadas altas, gritaria, cantos de incentivo e xingamentos aos rivais iam tomando cada vez mais força. O cheiro de banana frita se espalhava por todo o lugar. Elas eram levadas em sacolinhas dentro da grade dianteira de ventiladores que os ambulantes usavam como bandeja para trafegar no meio da multidão. Outros ambulantes andavam de um lado para o outro carregando um isopor nos ombros contendo água, cerveja e refrigerante.


Papai me contou que nós tínhamos artilheiro do campeonato do nosso lado, mas que o Trem tinha o melhor goleiro, o Aranha, chamado assim porque parecia ter oito braços pelos quais nada passava. Aranha era um preto enorme, tão alto que o zagueiro mais alto do Trem precisava apontar o nariz bem para o céu se quisesse olhá-lo nos olhos, e também tinha a cara fechada num semblante frio que parecia inabalável. Já o nosso atacante, Lúcio, não impunha medo algum. Tinha orelhas de abano, uma calvície se formando no topo da cabeça, o corpo esmirrado e a pele mulata.   


O Ypiranga iniciou a partida no hemisfério Sul e o Trem representava o Norte. A bola começou com a Locomotiva, mas após uma troca de passes errada, Lúcio, rápido como o vento, recuperou a bola e tabelou com um companheiro que o deixou cara a cara com Aranha. Lúcio ajeitou o corpo para a batida e chapou com a qualidade dos craques. A bola viajou em curva, saindo do alcance do goleiro. Foi como se tudo acontecesse em câmera lenta: as pessoas ergueram-se e ficaram de pé, prontas para pularem em comemoração; o grito de gol ia subindo pela garganta; papai já me enlaçava forte com um dos braços, puxando a gola da minha camisa e mantendo os olhos arregalados atentos no lance.


Mas o grito de gol daquela multidão foi frustrado pelo Aranha que voou como se tivesse superpoderes para espalmar a bola para escanteio. O confronto entre os dois craques estava oficialmente iniciado e prometia ser disputado até o fim.


Lúcio ainda tentou mais duas vezes: uma cabeçada no chão que Aranha buscou como se fosse Gordon Banks contra Pelé na Copa de 70 e num chute de fora da área que acertou o travessão.


O Ypiranga pressionava mais e a torcida cantava a plenos pulmões o hino escrito por Alberto Malcher:


Ypiranga conquistando corações,foi tua garra, tua luta fez nasceresta torcida tão imensa e apaixonada,que te incentiva, com amor te faz vencer.

            Mas o gol não saía, realmente nada parecia passar pelo goleiro de oito braços. Mas a torcida continuava cantando o hino que provocava:

Alô, galera, segura a emoção

segura o coração, é dia de decisão.

Foi numa festa em pleno Zerão

Ypiranga campeão descarrilando um Vagão.

 

Em pouco tempo eu já havia aprendido a letra e cantava com tanta força que sentia as veias do meu pescoço saltarem.


Eu não sabia na época, mas existe uma “lei” no futebol que se fez presente naquele momento: quem não faz, leva. E após tanto insistir sem sucesso, foram eles quem abriram o placar. Acredito que o Ypiranga sentiu o golpe, pois, logo em seguida, numa saída toda estabanada, sofremos o contra-ataque e tomamos o segundo gol no final do primeiro tempo. A torcida do Ypiranga se calou e só era possível ouvir o canto apaixonado dos rubro-negros do outro lado.


O juiz apitou o final do primeiro tempo e a torcida xingava os jogadores na saída para o vestiário.


Apesar de estarmos perdendo, papai ria daquela bagunça generalizada. Ele me olhou com um brilho de alegria em seus olhos escuros.


— Está se divertindo? — perguntou com um largo sorriso no rosto.


Eu estava era com raiva, de cara emburrada porque estávamos perdendo o jogo. Senti o espaço entre meus olhos doer, era vontade de chorar. Papai percebeu e me deu um abraço, o que me fez despencar de vez em lágrimas.


— Ah, filho, não fica assim, é só um jogo. Viemos para diversão, não para você chorar!

— Eu não queria que a gente perdesse! — reclamei.


Papai me segurou pelos ombros e sacudiu-me de leve.


— Ei, para com isso. Futebol é assim mesmo, um dia se ganha, noutro se perde. Além do mais, o jogo nem acabou, temos que acreditar até o fim! Entendeu?


Ainda ruminando o choro, concordei num movimento tímido de cabeça. Papai chamou um ambulante e me comprou um guaraná e um pacote de banana frita. Com as guloseimas em mãos, logo esqueci o choro e quando os times voltaram para o segundo tempo, eu já estava plenamente feliz.


As coisas agora estavam invertidas, o Ypiranga estava no Norte e o Trem, no Sul. O jogo recomeçou, a partida estava disputada, os jogadores brigavam pela bola em cada centímetro do campo. Em determinado momento, percebendo que a marcação acirrada do Trem não permitiria a troca de passes, Lúcio resolveu decidir sozinho. Pegou a bola na ala esquerda e conduzindo-a próxima ao pé, com passadas curtas e velozes foi passando pelos marcadores como se eles fossem crianças. Alguns defensores entravam na maldade, tentando derrubar ou machucar o nosso atacante, mas ele resistia às pancadas, impassível, deixava os marcadores no chão e seguia pela ala até começar a puxar a bola para dentro e ameaçar invadir a área. Um dos zagueiros veio para a dividida, tentou chutar a bola para longe, mas no movimento de chute, Lúcio deu um toque rápido na bola metendo-a por entre as pernas do zagueirão que chutou o vento. Lucio então se viu sozinho dentro da área e cara a cara com Aranha. O atacante ameaçou o arremate, mas o goleiro nem se mexeu, Lúcio ameaçou de novo e Aranha dessa vez deu um ligeiro passe à esquerda e sem titubear, Lúcio aproveitou o movimento e rapidamente arrematou no canto oposto. Aranha ainda chegou a saltar e até a tocar na bola, mas não dava mais para impedir, a bola passou e sacudiu, finalmente, a rede do Trem.


A torcida comemorava em polvorosa. Tomamos banho de cerveja, refrigerante e água. Papai e eu nos abraçamos e quando vimos já estávamos abraçados a outras pessoas que sequer conhecíamos, mas comemorávamos todos juntos como se fossemos uma grande família que se ama desde sempre. Gritei até ficar rouco e quando fizemos o gol de empate, mais uma vez na jogada individual do nosso craque, eu não tinha mais forças para gritar. Papai me carregou, colocou-me sobre os ombros e a torcida voltou a contar loucamente:

 

Alô, galera, segura a emoção

segura o coração, é dia de decisão.

Foi numa festa em pleno Zerão

Ypiranga campeão descarrilando um Vagão.

 

Mesmo rouco cantei com a voz falhando e tudo. Lembro de pensar que aquele era o dia mais feliz da minha vida. Do alto dos ombros de meu pai pude ver os torcedores rivais calados, roendo as unhas preocupados com a virada que veio no final do segundo tempo num golaço de falta de Lúcio. Ali foi o fim de vez da minha voz, foi a certeza definitiva que aquela torcida que nos rodeava era nossa família desportiva. Todos se abraçavam e comemoravam!


O jogo acabou e, ainda em êxtase, nós deixamos o estádio aos poucos, seguindo a enorme fila até o estacionamento.


Entramos no Fiat Tempra, papai deu partida e tomamos a Ivaldo Veras em direção à Rodovia JK, dobramos na primeira à direita, passando em frente ao Estádio Zerão e depois a primeira à esquerda em direção à rotatória do Monumento Marco Zero. Esperamos a passagem de alguns carros e motos e entramos na rotatória para sair na Equatorial: rua por onde passa a linha do Equador. Era uma rua um tanto escura e deserta, mas papai queria cortar o trânsito que estava congestionado na Rodovia JK.


Eu falava sem parar dos gols e dribles do Lúcio que venceu o gigante Aranha. Papai sorria me ouvindo falar, sorria com aquele brilho que lhe ardia os olhos e me incentivava a falar mais e mais apaixonadamente ainda sobre o jogo.


Foi quando um carro nos fechou e parou nos obrigando a parar também. Dois homens desceram dos bancos de trás nos apontando armas e gritando “Perdeu! Perdeu.”


Num gesto brusco, papai me empurrou para baixo do painel, fiquei encolhido no chão do passageiro, vi ele sacar a pistola da cintura, fechei os olhos e ouvi uma chuva de tiros e vidro se quebrando, o barulho dos tiros atingindo a lataria do carro e depois que os tiros cessaram, ouvi pneus cantarem.


Ao abrir os olhos, vi papai dormindo no banco do motorista. Uma espuma rosada se formava em sua boca, a mão largada sobre o freio de mão segurava sem vontade a pistola e de seu peito escorria o sangue grosso e viscoso.


Abracei-o, gritei por ele, mas não tive resposta. Desci do carro para gritar por ajuda e vi os dois homens mortos na pista. Papai matara ambos e o motorista os abandonara ali.


Quando a polícia chegou mais tarde, uma policial foi muito boa comigo, ela cuidou de mim até mamãe chegar. Enquanto esperava, ouvi um dos policiais comentar com outro, sem saber que eu estava ouvindo, que papai salvara a minha vida, pois, os ladrões matariam a nós dois se identificassem papai como policial. Odiei tanto aqueles bandidos, tanto!


Lembro de pensar naquele momento que aquele era o pior dia da minha vida.

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