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O Cronista do Inútil | por Ogum da Capadócia

  • Foto do escritor: Silvio Carneiro
    Silvio Carneiro
  • há 18 horas
  • 3 min de leitura

Enpretiadu



23 de abril amanheceu anunciando mundos: Dia de Ogum e São Jorge, aniversário e despedida de Pixinguinha, Lei de Pureza da cerveja… Em suma, encruzilhada total.


Pelas ruas de Macapá, devotos desembocam da igreja à Orla do Araxá, velas na mão, pontos de macumba nos lábios. No bar, o santo vira convidado de honra: roda de samba e cerveja gelada. Neste dia, assim como em tantos outros Brasis, Áfricas e Pindoramas, o substantivo persiste quando o adjetivo já voou. É o puro suco do Brasil, onde após a chegada à orla, o santo é levado até o meio de um bar para o início dos trabalhos da roda de samba. Que seria uma roda de samba no bar no meio da semana? É a profanação do sagrado. É a sacralização do profano. E eu não resisto mesmo após um longo dia de trabalho. Só conhece o encanto quem deixa de contemplar o mundo com os olhos do ocidente e enxerga a beleza do respeito e amor pelo santo que tem cada um daqueles que pegaram suas velas e as acenderam no balcão do bar. Naquele momento eu me vi em transe com o clarear do rosto dos devotos pela vela acesa no balcão. Os mais safos acendiam e já colocavam dentro de copos plásticos para que o vento não os apagasse, louvando São Jorge com Ogum na cabeça e vice-versa, tomando benção com uma mão e tomando uma gelada com a outra. Como eu já disse: puro suco do Brasil.


Em meio ao ébrio cotidiano de correria, a sobriedade da vida esvai-se na amargura da cerveja que desce pela goela e logo sai pelas glândulas sudoríparas no cardio ensaiado de alegria que toma conta do corpo no sambar dos pés. É aqui que temos um momento de vida, um momento onde aquele sujeito marginalizado encontra sua liberdade na possibilidade de ser humano através do festejo, é pela brecha, é pelo sorriso, é pela fé e por várias vias outras.


No Amapá configura-se como um dia feliz. Um deles, na verdade. Acompanhado de outros, agora que se inicia o Ciclo do Marabaixo, Marabaixo que, inclusive, salvou as forças de Jorge no Curiau no mesmo dia com grande festejo recheado de gengibirra, feijoada e caldo. É um dia feliz pois todo dia que um tambor toca, o coração dança no mesmo ritmo e o corpo se liberta. Confesso: sinto um forte arrepio no primeiro toque de um tambor. Um dia feliz. É um dia que podemos reconfigurar os sentidos da realidade através da imprevisibilidade e na criatividade de ser no mundo mesmo com os constantes desvios existenciais aos quais somos submetidos.


No final das contas, eu falo sobre as inutilidades necessárias, das improdutividades, da vadiagem. Coisa boa. Importar-se e encher o coração com aquelas coisas sem finalidade, coisas que são tão potentes em si que não se realizam em algo externo, mas sim em si mesmas. A boa e velha inutilidade. Quando penso nisso, lembro da deliciosa feijoada oferecida no dia com tempero de comunidade e cheiro de axé, tão inútil quanto a alegria, tão valioso quanto a inutilidade. Feijoada que traz uma perspectiva afetiva que vai muito além das definições de laços presentes nas nossas gramáticas normativas, é a Dinâmica da Feijoada, tão importante pelas amizades e sorrisos que ela traz, bem como o espanto na morte, além da força vital que é incorporada ao sujeito para que consiga vencer as demandas e batalhas do cotidiano do trabalhador.


Essas são as futilidades que reinventam os sentidos do mundo que me encantam a vida e me permitem sorrir. O que seria de nós sem as benditas inutilidades que nos mostram que a vida é bem mais do que acordar, sofrer com transporte coletivo, trabalhar, comer e dormir? Dias como esse lembram como o sujeito aqui por essas terras coloniais encontra formas de ser diferentes daquelas que, coercitivamente, empurraram a ele. Mais um dia lindo, mais um dia inútil, mas um dia de batalha - que, dependendo da temperatura da cerveja, reconstitui ou prolonga a dor do guerreiro.


OGUNHÊ! Salve Jorge!

 
 
 

1 commentaire


SidCastillo
há 16 horas

FIRME POETA

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