Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecermos dignos dele? Nunca houve um ato maior - e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda história até então!
Friedrich Nietzsche, Gaia Ciência, §125
Não ouviram falar daquele deus louco que vinha, à calada da noite, sem lanterna nem lamparina, à procura do homem? Onde estará você, criatura? Ele se perguntava. Eu o deixei aqui, enquanto brincava com esse barro... para onde terá ido? O demiurgo, sentado ali perto, a mascar folhas, disse nunca mais ter visto a criatura. Depois de crescido, depois que suas pernas avançaram até a costa, desgarrou-se do chão nascido, como se criando asas, e voou para o sul. Apontava em direção à costa, porém algo em seu olhar sorria, talvez tentasse ludibriar, ou pretendesse ocultar alguma coisa do deus. Não ousaria, disse então, suspeitando da suspeita divina. É que há muito ninguém procura por ela. Há muito ela se foi, e estamos sós. Terá se perdido pelo caminho? Terá encontrado outra morada? Outra origem? Outro amor? Morreu ou passa bem? Já não me importa. Então por que o interesse súbito por alguém tão ingrato? Sinto saudades do riso da criança... Mas e tu? Como saber se não estás apenas interessado em algum trocado, alguma oferta para tuas festas imemoriais, ou se também sentes falta das gargalhadas? Nisso o demiurgo outra vez aponta em direção à costa sem, contudo, olhar para o rosto do deus, que chorava.
Era certo poder encontrar o homem no campo, para lá da costa do mar, junto aos rios de água doce, pensou. No entanto, os campos, desérticos ao nascer do dia, haviam trocado o verde pelo cinza, e ao presenciar o rio assim, com sua nascente minguada desde a encosta, o deus prefigurou a verdade, sem acreditar. Terá passado por aqui o homem! Terá passado. Tinha desespero na voz. Edifícios inoperantes se acumulavam feito mata invertida, sem vida. Nas ruas, o lixo formava inúmeros arquipélagos. Na Ágora, agora, apenas fuligem e destroços de guerra. Procuro o homem! Onde estará o homem! só ouviu de sua indagação o eco, como se alguém lhe apontasse o dedo: o homem... o homem. No mar, ali próximo, ninfas e botos, enamorados da aurora, se espantaram com os gemidos divinos. Esperavam pudessem os titãs virem em seu auxílio, mas o vozerio que se seguiu era o de uma revoada de grifos e harpias, irritantes pelo deboche com que zombavam do pesar da divindade, rindo feito hienas, ou feito idiotas. Quem é esse que perde sua criatura e procura sua desrazão? Quantas procuras criaturas? E, pela sutileza dos seus trocadilhos, gargalhavam, zombeteiras, e voavam, delirantes, deixando o deus envergonhado.
Foi então que viu pela primeira vez seu rosto na superfície da água, reconhecendo a face horrível do que lhe tinha sido ocultado, pela falta de reflexo. Mas como! Serei eu? Diziam ser a face do deus tão bela! De onde vem esse olhar aterrador? E essas rugas de desespero? Terá o homem nos enganado? Serei eu sua pior versão? Até o fim da tarde, permaneceu à beira do lago, inconformado e imóvel diante do olhar que lhe confessava a descoberta: O homem está morto! Nós o matamos! Todos nós, assassinos dos assassinos! Gritava, mas como resposta, só ouviu novamente o eco de sua voz embargada: morto... matamos... nós... assassinos... Precisou correr até a biblioteca pública, esse mausoléu de homens, para constatar seu crime. Poucos livros, ainda não consumidos pelo fogo, serviam de banquete a traças e roedores. Não reconheceu, porém, nenhuma palavra. O que dizem? O que deu a entender a eles que podiam dizer tanto, sem dizer nada? Terá sido obra dessas mãos sujas, terá sido esse o crime maior do que fizemos, isso que faz de mim o pior dos criadores? Quando foi que recusamos assim a criação de nossas mãos? Quando o mundo pareceu menos atraente aos nossos olhos, e fugimos, certos de que ninguém daria por nossa falta? Que esboço, afinal, não explica a loucura dos poetas e profetas, ao rejeitarmos nossa arte, ao pensá-la tivesse qualquer papel menos valioso que o das cédulas? Quando foi que acreditamos em nossa própria palavra, sem fiança nem fiador, e pensamos que ela seria suficiente para fazer falar mares e pedras? As lamentações do deus continuavam, mas apenas uma pomba branca, pousada sobre seu ombro, pesava-lhe como caísse uma estrela.
Achegado, então, à beira do rio, sob o peso da culpa, o deus adormeceu e sonhou.
Seu corpo havia sido esquartejado, a princípio em três, depois em doze, por fim em tantos pedaços quanto pudesse um pedaço ainda perdurar na boca faminta, antes de virar pó. Na fogueira ao centro da roda, assavam e comiam sua carne, bebiam seu sangue em taças douradas, lambuzados com a alegria dos desocupados, convulsos na orgia que ressignifica a origem e o fim de tudo. Cantos extáticos ecoavam pelas matas, as árvores se erguiam sedentas aos céus, foi possível entrever pequenos montes se moverem de lugar, dispostos a encontrar menos solidão reunidos em cordilheiras. A algazarra chegou aos confins do mundo, tamanha diversão sacudia o planeta em festa. Viu então surgir, em meio às águas oceânicas, abertas na fenda dos precipícios, a genitora vestida de sol. Um brilho indescritível cobria sua nudez, mas seu olhar em chamas era visto a léguas de distância. Juntava as mãos, talvez em prece fervorosa, concentrando os ventos dos quatro cantos ao redor de si, até que todos os seres ali presentes, numa espécie de cerimonial, comessem uns aos outros, vorazes, acumulando-se em corpos cada vez maiores, até não restar nada mais vivo, até que um grande corpo de homem, o maior dos devoradores, se levantasse do seu sono profundo, espécie de gigante de um olho só, que então ainda sem força nas pernas, sem ter onde se apoiar, derrubava-se estrondosamente ao primeiro passo, fazendo avançar terremotos e maremotos para todos os lados. Depois do cataclisma, a poeira baixou e aos poucos a vida, ritmada, ganhava forma outra vez, em movimentos de dança, a partir da carne decomposta daquele monstro, feito promessa não realizada.
Quando o deus acordou, sentiu um arrepio. Sua boca, sem a língua, pegou-se incapaz de dizer as palavras que gostaria, usadas para contar a todos o que vira, para descrever o que há de vir, para denunciar seus cúmplices. Mas quem ouviria? Não havia explicação. Sentiu sob seus pés o cheiro forte de cadáver, tentava sacudir a lama, ela o tragava para baixo. Acreditou fosse ainda parte do sonho, alguém me ajude! mas ninguém ouve um desespero sem voz. Nas pernas, a mordida de um crânio explicava que ele, acordado, estava afundando num cemitério pantanoso, reconheceu as lápides e as inscrições, as palavras da salvação cravadas em pedras lascadas. Agora eu sei, dizia de si para si mesmo, agora eu sei! Torceu o corpo o quanto pôde a fim de se desvencilhar da lama e da morte, sem sucesso. A cabeça, mantida ainda sobre a terra, pôde ouvir os passos de uma velha bruxa, que se aproximava com seu cão. Ao ver a cabeça do deus fincada na terra, riu-se gostosamente. Eis aí o último de sua geração! Como não saber terrivelmente irônico encontrá-lo assim? O homem come, consome e some, desde que vocês o deixaram brincar com fogo e com mandamentos, dizia a mulher. Agora vejo a quem a criança puxou.
O cão, tendo farejado algum tempo as bochechas divinas, enfim levantou a pata e mijou sem cerimônia a face do deus, seguindo satisfeito após sua dona, para continuarem a caminhada até o pôr do sol. Conta-se que, ao voltarem, encontraram no lugar a menor de todas as árvores, frágil e bela e impossível de arrancar.
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