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O menino e a poesia | Bruno Muniz

  • Foto do escritor: Silvio Carneiro
    Silvio Carneiro
  • 1 de set. de 2024
  • 3 min de leitura

[Certo dia perguntaram àquele garoto por que escrever a vida.

Não basta vivê-la?

Era como se descrever os sentimentos fosse uma espécie de crime].


__ Vá brincar com seus amigos.

__ Já vou, pai, só to terminand..

__ Vá agora. Pare de escrever essas idiotices.


Então ele passou a escrever à noite, usando as luzes da lua. Por vezes dormia os dias nas aulas de matemática.


Um dia encontraram seus escritos. Levaram-no à diretoria.


__ O que significa isso?

__ São apenas palavras. Minhas palavras.

__ Palavras erradas, sem sentido. Você está deturpando a língua portuguesa.

__ São minhas palavras. Apenas minhas palavras. E eu as amo.

__ Cale-se.


Ao folhear um poema chamado saudade, ela o indagou rispidamente:


__ O que significa isso? saudade é sentir falta de alguém ou de algo. Apenas isso.

__ Mas são tantas as maneiras de sentir saudade.

__ Você não pode querer saber mais que o dicionário. Eu te proíbo de escrever. Só existe uma saudade e pronto.

__ Não. Existem muitas saudades.

__ Cale-se.


Não aguentando de curiosidade, ela o indagou:


__ Defina-me saudade.

__ Saudade é uma maneira da alma dizer pro corpo que também sente fome.

__ Defina-me outra forma de saudade.

__ A saudade é triste, quando o corpo sente vontade de dizer pra alma que ela não é mais bem-vinda.

__ Defina-me a tua saudade.

__ Saudade, contrapeso do amor.


Ela estava quase se rendendo, mas...


__ Defina-me minha saudade.

__ Então defina-me o teu amor.

__ Não sou louca a ponto de descrever o amor.

__ Meus pêsames.


Irritadíssima ela esbravejou:


"Amanhã você só entra no colégio com seus pais".


No outro dia, a diretora mostrou os escritos ao pai do garoto, que pediu desculpas envergonhado:


"Onde já se viu, desrespeitando a língua portuguesa dessa forma. Esteja de castigo por uma semana. Sem canetas. Sem papel."


Foi então que o garoto teve a ideia de trocar doces e balas por canetas e papéis. Tudo no mais absoluto sigilo.


Todas as crianças da cidade o procuravam com canetas e folhas de papel.


Mas um dia acabaram-se os doces e as balas, e o garoto começou a trocar as canetas e as folhas por poemas. A epidemia se alastrou tão rapidamente como um raio de sol. Em poucos dias todas as crianças da cidade estavam lendo poesia; e começaram a escrever poemas; um atrás do outro, sem parar.


Não havia mais o que fazer. Todos se renderam. As escolas passaram a aceitar metáforas e sentimentalidades. Chorar não era mais motivo pra perder pontos nas notas.


Esse dia foi escolhido o dia mundial da poesia.


E aquele garoto nunca mais foi visto. Uns dizem que ele vive numa nuvem, outros que ele anda pelo mundo plantando poemas. E a velha diretora ainda hoje o procura desesperadamente. Talvez na esperança de que um dia ele a perdoe. Ela sente a cada dia uma saudade diferente, e todo ano, no dia mundial da poesia, faz a maior festa da escola; e sempre se lembra do garoto de brilho nos olhos e sorriso triste, que um dia ousou reinventar o mundo ao escrever o amor.


[E antes que me perguntem como o garoto conseguia tantos doces pra trocar por canetas e papéis, eu explico: é que ele era vizinho de uma velhinha linda que vendia doces. No dia que o dinheiro acabou, ela passou a aceitar sorrisos como pagamento, e o ensinou que "nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas"*]


Essa poesia cora de saudade.



*trecho do poema "Saber viver", de Cora Coralina.

1 comentário


Convidado:
10 de set. de 2024

muito bom. Parabéns!!

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