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Foto do escritorSilvio Carneiro

O passo | Ori Fonseca

Foto de Jason deCaires Taylor de uma de suas estátuas em tamanho real colocadas no fundo do oceano, onde construiu um grande museu subaquático chamado Musa, nas águas ao redor de Cancún, Isla Mujeres e Punta Nizuc, no México.


Ergo o pé para dar o passo,

E o tempo ameaça estancar.

Até que se completem as sinapses desse movimento,

Tenciono escrever mentalmente 

Uma biografia do alheio que sou.

Como num Big Bang às avessas,

A vida regressa para um único ponto de tempo

E se concentra num caos de eventos.

Lembro-me de ter consultado a balança pela manhã,

Ela me respondeu 67,1;

Já fui mais pesado, mas também já fui mais leve.

O joelho que se dobra para o passo interminável 

Não suporta mais o peso que se acumulou na alma,

Mas a pressão agora está sobre a outra perna,

Que intenta fraquejar porque a eternidade 

Sempre parece eterna.

Então penso na eternidade que durou

O trajeto das balas até o corpo

De Benjamim Zambraia;

Penso no tempo infindável 

Que Anna Karenina passou viva sobre os trilhos,

E suspiro arfante como se também fosse morrer.

Mas a morte não me incomoda 

Nem me assombra.

O que temo é não concluir este passo

E não saber para onde me leva.

Como se adentrasse um túnel de acontecimentos,

Vejo os anos passarem ao meu redor

Numa nitidez cristalina e violenta.

A rua onde arrasto correntes em sonhos,

Amores que me palpitam o peito

Como se tivessem acabado de nascer,

Medo de perder o que já perdi há tempos,

Saudade do que ainda perderei.

E provo do sal de cada lágrima que verti,

E sofro pelo sal de cada lágrima que fiz verter,

E quero segurar aquele tempo para fazer diferente,

Mas esse tempo é ardente

E me queima as mãos se tendo detê-lo.

E eu não sei pedir perdão,

E eu não sei me perdoar,

Não tenho esse poder.

Não tenho como ser eu mesmo o tempo todo.

Defendo o que acredito

E argumento dentro da minha certeza de humano,

Mas me preocupo com o que meu irmão ouve de mim.

Já fui mais pesado, mas também já fui mais leve.

Sapos que engoli já os regurgitei

Para não os engolir mais,

Mas também não quero fazer descer anfíbios pela goela alheia.

O tempo amalgamado neste passo

Não me oferece a escolha

De gastar a paciência com desamor.

Quero rebobinar os filmes

Que me fizeram voar,

Quero refolhear os livros que me fizeram sonhar,

Quero reaprender as canções que me deram leveza.

Os ponteiros giram estabanados

Em meu túnel de vida,

Mas o tempo continua parado em meus joelhos cansados.

Receio de ficar preso neste turbilhão de eventos,

Enquanto fora dele meu corpo calcifica

Na intenção de um passo

Que nunca se efetivou.

Hoje, olhei para o mar, e ele parecia este passo.

Estava estático, falsamente calmo,

Como uma fotografia,

Como uma pintura em aquarela.

Já não sei quanto tempo se passou,

Já não sei se a vida toda se passou

Nesta biografia de alucinado.

Os projéteis já estão rasgando os órgãos de Benjamim Zambraia,

As rodas do trem já estão dilacerando a carne de Anna Karenina,

Aquele mar falsamente calmo

Já avançou sobre a rua

E já tem minha estátua de corais em seu fundo

Tentando, tristemente,

Concluir um passo.

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