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O poder da palavra em nós | por Airton Souza

  • Foto do escritor: Silvio Carneiro
    Silvio Carneiro
  • 3 de ago. de 2024
  • 4 min de leitura


Gostaria de iniciar esse texto usando as palavras finais que estão no Manifesto Curau - “Flagrados em delito contra a noite”, do poeta Vicente Franz Cecim, publicado na década de 1980, mas que nos serve como base para pensarmos enquanto pessoas afetadas pelas mais adversas políticas de violências em voga até hoje:


Nesse imaginário, é esta região na verdade quem fala, e, através dela, falaremos todos nós. Bastará deixar que ele nos diga algo. E escutar. Com muita humildade. Muita radical exasperação também. [...] Porque, no fundo, só uma coisa sonha e nos sonha: a Vida. Nossa História só terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso favor.


Vindo da extrema pobreza compreendi, tardiamente, o poder da palavra, da sua relação mais tênue com a vida ou em prol do movimento que a vida é em sua pluralidade, intersubjetividade e diferença. É necessário, antes de tudo, partir da práxis e, principalmente, da forma vingativa que a palavra possui em si mesma. Abrangendo processos de vinganças capazes de abalar velhas estruturas de supostas verdades colocadas em práticas ao longo dos últimos 500 anos de história desse país.


Nesse caso, a referência à vingança não parte da compreensão ocidentalizada desse termo, ou do sentido pejorativo e sanguinário que esse termo carrega, porque para nós a vingança não poder estar para sempre pseudopetrificada, mas a vingança através da beleza, das artes e desse mecanismo de partir do nosso próprio imaginário para que possamos falar por nós mesmos e sermos ouvidos pelos que tentaram nos calar. Por isso, ainda muito jovem, entre os meus 12 ou 13 anos de idade decidi fazer aquilo que o poeta Manoel de Barros chamou de carregar água na peneira. Virei poeta. Poeta numa territorialidade que me queria morto, ao contrário da de Drummond que o queria caduco, embora ele mesmo decidiu não caducar. Por isso, a minha vingança pauta-se, primordialmente, na tentativa de dizer que a palavra pode tudo. Porque foi ela que me tirou da extrema-pobreza e me deu a oportunidade de poder ao menos ter hoje condições de comprar o que comer.


Partindo da relação intrínseca entre escola pública e a realidade é que fui compreendendo, pouco a pouco, o poder da palavra convencionalmente escrita. O seu peso histórico, social, cultural e político. Nesse caso, percebendo o quanto as textualidades possuem aquilo que Foucault denominou de microfísica do poder, sobretudo porque elas possuem estâncias excludentes; silenciadoras; abarcadas por um sistema institucional, às vezes, quase imperceptível. Postulando uma espécie de regime da verdade esse sistema institucional, que é aquele parecido com o que está presente em "O processo", de Franz Kafka, continua até hoje colocando em prática ações que querem, quando muito, apenas o nosso murmúrio, na condição de um país, de uma América Latina que Hugo Achugar vai denominar de planeta que foi considerado como sem boca.


Porém, é preciso ter em mente, conforme o próprio Foucault escreveu que “A verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que a reproduzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduz”. Pois, essa verdade unívoca sobre nós é apenas uma das maneiras com a qual certas palavras podem reproduzir, continuamente, uma espécie de sociabilidade estranha, que vibra com as mazelas sócio-históricas que faz parte da história da maioria da população desse país. Contudo, essa suposta verdade não tem condições de proclamar e dizer quem somos. Porque nós podemos ser o que quisermos e carregar água na peneira nem cansa tanto assim.


Eu queria muito que o mundo da leitura pudesse ter nascido em minha vida como foi na de Paulo Freire, no chão do quintal, entre pedras, gravetos e formigas. A leitura ali, viva, com várias espessuras e matizes. Especificamente em meu caso esse mundo nasceu como necessidade. Por isso, eu demorei muito a perceber a força inconjugável e, ao mesmo tempo, incontornável que os livros possuem e o quanto eles podem mudar a vida de meninos como eu, que vi, noite após noite, minha mãe ir dormir com fome, porque a comida não dava para todos nós, e ela mentia dizendo que não estava com fome, para que nós pudéssemos comer o resto do que sobrara do almoço, irremediavelmente sem culpa. É por isso que hoje essa pergunta feita por Frantz Fanon em sua obra-prima "Os condenados da terra", faz tanto sentido para mim:


O que fazer para ter a terra e o pão?


Diante da possibilidade de responder a essa inquirição de Fanon eu sei que há os que dizem que as literaturas não podem nada. Que elas não podem mudar vidas. Os que afirmam que, entre as suas tarefas, essa não existe. Já os testemunhei inúmeras vezes repetindo essa sentença. Mas eu penso ao contrário. E o próprio Fanon me encoraja a pensar assim, quando ele diz que "o faminto não pretende a verdade. Não a proclama, porque a verdade está em seu próprio ser".


O que fazer para ter a terra e o pão? Foram os livros, as literaturas e a leitura que me trouxeram até aqui. O poder que a palavra escrita possui desde 1500 neste país, com a peça inaugural dessa força irremissível, que foi a carta de Pero Vaz de Caminha. Foi ela quem nos disse primeiro. Ela quem começou o processo ou projeto de tentar nos emudecer, ao longo de muitos séculos. Mas também foi ela e todas as literaturas, as suas palavras que me deram a terra e o pão. E é uma pena que meu pai e minha mãe estejam mortos para testemunhar que eles estavam certos. Que mesmo analfabetos insistiram para que eu pudesse acreditar no poder da escola pública. Na força transformadora que os livros podem fazer em nossa vida. Que a palavra pode tudo, inclusive fazer uma flor romper o asfalto, como nos disse Drummond.

2 commenti


Ospite
21 mar

Também vim de família humilde, minha mãe, analfabeta, sempre dizia: "Meu filho, estude porque só o estudo, pode nivelar o pobre com o rico".

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orifonseca
06 ago 2024

👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼

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