Sendo mais um projeto de sucesso do Coletivo Juremas, o Festival Literário de Macapá (Flimac) realizou sua segunda etapa entre os últimos dias 3 e 7 de dezembro, reunindo muita literatura, música e artes visuais em uma celebração única. Em sua terceira edição, o evento é hoje, sem dúvidas, um dos principais marcos culturais do Amapá.
A programação contou com uma variedade de atrações em algumas escolas da rede estadual de ensino, além de exposições e mesas temáticas na Bibliogarden, espaço cultural administrado pelo Coletivo Juremas dentro do Amapá Garden Shopping.
A grande novidade desta edição foi a realização 1° Círculo Metropolitano PBL – Vozes e Versos da Periferia, em Macapá. O evento deu o pontapé inicial para uma série de encontros realizados pela Periferia Brasileira de Letras com objetivo de apresentar e debater os resultados preliminares Pesquisa PBL 2024.O Círculo é uma realização do Coletivo Juremas, em parceria com a Cooperação Social da Presidência da Fiocruz e a Secretaria de Formação, Livro e Leitura do Ministério da Cultura (SEFLI-MinC). E este evento só se tornou possível pois, em agosto desse ano, o Coletivo Juremas passou a integrar a Periferia Brasileira de Letras – PBL, passando a se conectar com uma rede nacional de coletivos literários que compartilham o compromisso de transformar realidades em territórios de alta vulnerabilidade social.
Pouco antes da solenidade de abertura da 2ª etapa do Flimac, O Zezeu conversou com Felipe Eugênio, historiador e coordenador da PBL – Cooperação Social da Presidência da Fiocruz e com Mariane Martins, pesquisadora da Cooperação Social.
O Zezeu - Bom, primeiro vamos falar um pouco sobre a Pesquisa PBL 2024. Qual a principal motivação para a realização dessa pesquisa, aqui no Amapá, e como os resultados obtidos até o momento podem contribuir para o fortalecimento dos coletivos literários aqui da região?
Felipe Eugênio - Nós temos um ponto que é importante, que é a gente situar primeiro de onde nós falamos para pensar essa pesquisa. E a gente está falando da Fiocruz, no caso. E aí fica essa pergunta para vocês que estão de fora: Por que a Fiocruz, que é reconhecida por ser uma instituição de saúde, está participando de uma pesquisa sobre literatura em periferias? — E a resposta para isso é porque a gente está encaixado num campo chamado promoção da saúde.
Esse campo, a gente poderia dizer, é uma área que, se a gente for pegar a saúde rapidamente em três eixos, temos: a atenção básica — que todo mundo conhece (o hospital, o posto de saúde);— a prevenção — que todo mundo conhece também (coma mais alface, faça caminhada e tal) — e a promoção, que é como a gente consegue fazer uma transformação que resulte em saúde. Transformação de quê? Social. Porque a promoção da saúde pensa isso. É uma promoção em especial, entender a saúde como algo mais amplo, algo formado por uma determinação social. E isso vai incluir a empregabilidade plena, a educação de qualidade, a moradia de qualidade, a uma política econômica de qualidade.
Tudo isso a refletir vai impactar diretamente a saúde das pessoas. Se a gente for pensar, a diferença da longevidade num bairro abastado e num bairro periférico, esse reflexo é de uma série de fatores e não só, quase nunca é de uma herança genética do adoecimento. Tem a ver com uma composição variada, que esses determinantes sociais entram lá.
Então, quando a Fiocruz vem investir com a literatura, é porque ela está reconhecendo que os coletivos literários, nas periferias, têm sido um dínamo cultural e político delas.
Bom, então, aí entra nosso lugar. Entendemos que a atuação da promoção da saúde tem uma função primeira, que é de estimular a cidadania, porque ela significa também uma participação sobre temas públicos e a possível transformação de problemas sociais que a gente entenda, que existam. Bom, esse é o percurso.
Então, entrando na pesquisa agora. A pesquisa, que é uma parceria com o Mistério da Cultura — inclusive, com o MinC, ela busca entender qual é o estado da arte nos territórios periféricos para quem está atuando com a literatura. — E esse estado da arte passa por uma série de dimensões. Tipo, quais são as condições que esses coletivos literários têm para atuar? Quais são essas condições a partir da demanda que, eventualmente, eles tenham de se formalizar ou não para precisar de recurso público? Quais são as condições, a partir da condição ou não, de você ter um ambiente democrático suficiente para você poder divergir naquele território e o seu risco de vida? Quais são os temas mais comuns que são trabalhados por esses coletivos literários que têm a ver com temas do território? Quais são os sonhos também que esses coletivos têm? Tipo, cara, se crescêssemos, para onde iríamos? O que seria o horizonte de chegada?
Então, ter esse retrato de como funciona não só as periferias, mas as periferias com quem atua com literatura é uma expectativa que a gente tem com a pesquisa. E isso vai mostrando também um retrato nacional, mas também com a diversidade regional. Então, em cada região ou cada unidade da Federação, a gente encontra particularidades que não apareciam em outras. E esse contraste é muito interessante. Aqui no Amapá, por exemplo, a gente pegou coisas que ficam assim, opa! — eu não vi todas, né, todos os outros regionais, mas a expressão do feminismo, por exemplo, apareceu aqui que é muito gritante em relação aos dados nacionais. A gente falou assim, uau! — mas assim, é próximo de três vezes mais que os dados nacionais, sabe? E a gente ficou, “opa! Tem alguma coisa aí, vale o debate”.
Então, tem um momento agora que é da pesquisa, mostrando um momento posterior, por exemplo, que é as pessoas também do local olharem os dados e começarem a intervir sobre isso, a falar sobre isso.
Claro, o feminismo sim, porque nós, é o que a gente não sabe ainda, queremos saber.
Mariane Martins - A pesquisa se divide em alguns temas para a gente entender quem são esses coletivos literários, o perfil deles. É importante falar que a Periferia Brasileira de Letras trabalha com uma diversidade de linguagens literárias e os modos de fazer literatura periféricos podem ir desde a biblioteca comunitária, o slam, a roda de rima, a roda de rap, as editoras independentes. Então, podem participar dessa pesquisa, diferentes linguagens literárias (teatro de rua também está incluído).
E aí, a ideia é entender como que é esse recurso, como é que é o território. Se você chega numa praça, você consegue exercer seu direito a fazer uma apresentação artística nessa praça, ou não? E aí, isso acontece, como o Felipe falou, cada local, apesar de perifericamente, algumas semelhanças existirem entre os estados. Ao nível desses 10 que a gente está pesquisando, tem uma cor local sobre alguns temas. Então, por exemplo, a formalização, a gente vê que é um problema nacional para os coletivos, a questão do CNPJ para acesso ao recurso público, mas tem algumas especificidades. Por exemplo, aqui no Amapá, ficou bem latente a questão dos temas que são trabalhados nesses coletivos literários. Os mais trabalhados são o feminismo, a luta LGBTQIAPN+ e a ancestralidade. Ficaram bem marcados, assim.
OZ - Qual é o papel das políticas públicas na promoção e valorização da literatura produzida por esses coletivos literários em regiões periféricas como aqui no Amapá, no caso?
FE - A gente parte de alguns lugares. Um deles, foi um trabalho que a gente fez no primeiro ano da PBL, que foi estudar como se deu a Constituição da Lei de Castilho e pensar como ela pode ser implementada, a contento, especialmente nas periferias.
MM - Eu vou fazer um parênteses. A Lei de Castilho é a política nacional da leitura escrita, que foi sancionada agora em 2018. Mas já é uma luta de mais de dez anos desse setor do livro, leitura e literatura. E que tem um plano nacional, que é o Plano Nacional do Livro e Leitura, que ele é feito a cada dez anos. Em curso agora a gente tem um novo plano, está sendo feito um novo plano. E aí é como que a periferia está nesse plano, como ela está representada nessa política ou não está. E como que a gente se organiza enquanto Periferia Brasileira de Letras, coletivos. Somos 14, a rede atualmente está em dez estados, é formada por 14 coletivos. Mas tem essa função de capilaridade. E os temas conseguem conversar com outros coletivos para discutir essa questão local.
FE - Por que a gente está falando da Lei de Castilho? Porque pensar esses marcos legais é muito importante para entender quais são as possibilidades no âmbito regional, estadual, municipal, de se conseguir rubrica no orçamento para investimento.
A lei nacional é superimportante, que cria essa possibilidade de você formar essa atenção.
É claro que junto com isso tem os planos estaduais e municipais do livro e leitura, que vão acabar se amarrando com a Lei de Castilho. Ela foi recentemente implementada, então é algo super recente.
Eu diria que a gente está, de certa forma, não digo engatinhando, mas está agora no nascedouro de uma política pública, que ainda está vendo como serão os caminhos para ela ser implementada.
É muito importante existir esse marco legal, mas agora o desafio é outro. Pelo que a gente tem aprendido muito com camaradas nossas, a Renata Costa, por exemplo, uma grande camarada nossa que nos explica muito sobre isso, é fundamental os planos municipais e estaduais, porque isso vai conseguir construir uma relação idiossincrática de como a política pública naquele lugar pode e consegue alcançar uma maior democratização do fazimento de literatura e também do acesso à leitura na sua bibliodiversidade.
Essa palavra também é outra palavra muito importante, a “bibliodiversidade”. Eu concluo essa fala sobre isso. A gente acabou de mencionar a pesquisa da Regina Dalcastagnè, que é uma matéria muito importante para a gente, que é a personagem no romance brasileiro. E a Regina vai apresentar uma grande deformidade nas personagens de romances, que estão em grandes editoras, que tem uma capilaridade nacional, e que essas personagens refletem os preconceitos e a identidade dos seus autores que, em 70% de certa altura da pesquisa, eram homens, brancos, cis, do eixo Rio-São Paulo, que refletiam os protagonistas dessas suas histórias, e que também refletiam seus preconceitos sobre o lugar da mulher negra, da mulher branca, com o lugar ali do homem negro, com o lugar ali da figura periférica. A personagem aparecia nos livros sempre sobre lugares de muita estereotipia, típicas de um lugar viciado de classe.
Então, pensar em bibliodiversidade é pensar também que outras vozes têm que existir para construir essa narrativa brasileira, que ela é mosaical, ela é um tecido bem grande para ser composto, mas hoje ela é completamente tendenciosa pra um lado só. Só uns conseguem meios e recursos para publicar, e eu entendo que uma polícia pública tem que vir para criar uma lógica de equidade nesse cenário, que hoje seria, é algo reformista, mas é quase revolucionário conseguir fazer isso, né?
OZ - Vocês falaram um pouco também da questão de trabalhar junto com as editoras independentes. Com relação ao mercado editorial, como a PBL tem trabalhado para fortalecer a relação entre os coletivos literários e o mercado editorial tradicional, buscando ampliar as oportunidades de publicação para os autores periféricos?
FE - Bom, a gente pode dizer que a PBL em si, não está focando nisso...
MM - O que acontece: A gente fez a pesquisa, a primeira pesquisa aconteceu em 2022. E aí a gente teve os Círculos Metropolitanos naquela ocasião em 8 estados. E aí a gente discutia localmente os resultados da pesquisa. E aí surgiu um eixo de publicação, que depois a PBL criou uma carta, que se chama a Carta da PBL. A gente entregou essa carta no Ministério da Cultura para a Secretaria de Formação e Leitura. E um dos pontos dessa carta era justamente publicação. E lá estava a necessidade do desenvolvimento de ações e programas para incentivo da produção literária periférica. Ações que viabilizem a produção de escritores e coletivos literários periféricos. E ações de feiras e festivais literários em periferias para a circulação dessa produção, que foi algo que a gente estava conversando até com o escritor Bruno Muniz, aqui do Amapá. E ele falou pra gente da importância desses festivais, dessas feiras, que é onde o livro produzido na periferia pode circular.
Então assim, existe essa, dentro da PBL, muito trazido por esse eixo desse coletivo literário. Que é uma editora independente em São Paulo, a Kitempo, que trabalha com publicações afro-futuristas e traz pra PBL essa discussão da circulação dos livros, como fazer o livro existir para além dos grandes festivais e como tornar essa obra a sua circulação.
E aí entra toda uma discussão sobre as compras públicas dos livros produzidos pela periferia, do Plano Nacional do Livro Didático. Mas é isso, é algo que a gente está em construção.
A gente vê também na PBL que a periferia quer se ler. Falta uma correspondência de identificação do leitor com a obra. E eu acho que essa nova onda de produção literária periférica, que é de muita qualidade também, traz essa identificação e as pessoas podem se estimular mais a ler.
A gente teve agora o resultado da [pesquisa] Retratos da Leitura e a gente viu que, na pesquisa nacional, o número de leitores no Brasil teve uma queda. Então, como que a periferia também pode colaborar para a gente incentivar, de fato, a formação de novos públicos leitores?
OZ - Bom, vamos falar agora um pouquinho sobre o futuro da PBL. Quais são os próximos passos da PBL para expandir sua atuação e fortalecer essa rede de coletivos literários aqui no Brasil?
FE - A gente está concluindo agora uma pesquisa nacional. E o que a gente percebeu é que é muito importante ter tempo para fazer a pesquisa circular e conseguir fazer com ela também o que a gente chama de uma escuta de profundidade. Então, se a pesquisa por um lado, consegue alcançar muitas pessoas num formato de dados quantitativos, já há respostas.
Os Círculos Metropolitanos são oportunidades de poder aprofundar as questões que apareceram. A gente pode entender também coisas que a nossa compreensão de fora de cada estado não dá conta de produzir análise.
Então, você tem as pessoas ao redor, olhando para aqueles dados ali, elas podendo fazer considerações interessantes, porque não só elas analisam, mas também apontam para lugares para onde caminhar. Então, acho que a gente aprendeu porque eles são.
Talvez a gente tenha que fazer essa caminhada um pouco mais extensa. Então, acho que o próximo passo da PBL agora é botar para temperar essa pesquisa. E eu acho que temperá-la significa botá-la para rodar, para mais rodas acontecerem por aí. E a gente sair no final das contas com um documento mais aprofundado nas evidências que a gente está descobrindo agora. E isso vai se juntar depois com a política pública.
MM - Eu acho que criar articulações locais também para diálogo com o poder público, para a gente conseguir sanar as questões locais.
Aqui no Amapá, novamente, a gente tem a questão das editoras, como fazer os livros, os autores circularem, como sair os escritores do Amapá para outros lugares, como que o poder público pode e deve ajudar ou criar mecanismos para que isso aconteça. Então, acho que essas incidências em política pública para que a gente tenha a bibliodiversidade, para que a gente tenha condições de igualdade.
FE - Eu acho que, sobre isso, você puxou um bom fio, que é o seguinte: a gente também descobriu ao largo desse caminho da PBL que há um núcleo de força muito interessante na PBL que, embora seja de uma região nacional, que é a capacidade regional de fazer articulação política com sociedade civil e com poder público. E o que dá para dizer de cara, mesmo estando aqui há pouco tempo, é que o Amapá mal entra e já entra num circuito dos núcleos da PBL que mais tem mostrado — não digo nem avanço — já mostra que há uma maturidade de longa data.
As juremas são um caso muito impressionante, que se compara — hoje a gente pode dizer tranquilamente — que a Bahia está num lugar desses. Mas a Bahia teve uma influência forte também da PBL por lá, porque temos encontro nacional lá e tudo mais, e vemos um desdobramento dessa capacidade de articulação local com a nossa força nacional.
Aqui a gente já chega percebendo que a capacidade de articulação regional é muito grande e isso é ótimo, porque tem políticas públicas que são só de caráter regional que podem avançar.
Então a PBL sai do lugar de um protagonismo e um futuro em rede para fazer algo que é um lugar de suporte, com os nossos selos Fiocruz, com o selo PBL, com o selo MinC e ajuda no modo local às demandas que são típicas daqui a andarem.
Então se aqui a questão nova for como a gente vai fazer a compra pública dos livros em outros locais, que mexe muito na economia da editorial do lugar, aí a nossa função vai ser muito mais de dar um apoio, mais entendendo que isso foi algo, enfim, fruto do que a gente percebeu aqui, a pesquisa percebeu, e também do que as Juremas com outros conseguindo se articular. E isso eu acho que é um futuro da PBL. Essa força regional você ganha uma maior dedicação.
תגובות