
Meus dois irmãos mais velhos, com cerca de 14 e 16 anos, passavam o dia todo trabalhando como camelôs no centro comercial da cidade, e retornavam para nossa residência somente à noite, isso quando não emendavam em festas, e mesmo chegando bastantes cansados, muitas vezes, ainda queriam sair, para irem à casa das namoradas, ou simplesmente “bater pernas”, como se dizia naquela época.
Mamãe costumava dizer que Deus havia feito o dia para o homem trabalhar e que a noite fora feita para o trabalhador dormir, descansar e as almas penar, vaguear, em busca da redenção de seu pecados e paz eterna, sob pena dos rueiros sofrerem sérias punições dessas almas, até porque tinham que acordar cedo para mais um dia de labuta.
Como exemplo, mamãe contava a história da lavadeira que tirava a noite para passar as roupas que lavava durante o dia, descumprindo este ditame, sempre modificando, à medida que repetia a narrativa
De acordo com mamãe, a lavadeira Maria, aquela mesma da “MISSA DOS MORTOS”, apesar de não sair mais à noite para entregar as roupas passadas aos seus patrões, e não ir mais aquela tal igreja no período noturno para rezar, já que era muito carola, parecia que ainda não tinha aprendido a lição.
Maria era uma mulher trabalhadora e dedicada, tendo que se desdobrar no tanque, esfregando roupas, para conseguir o sustento de sua família, que crescia a cada ano, mas tinha hábitos que ia contra as regras naturais do universo.
Antes ela costumava ir à noite até a casa de seus patrões, carregando um pesado pacote de roupas passadas e na volta trazia outro de roupas sujas e deu no que deu e desde então, evitava no que podia em sair depois do escurecer, para não se encontrar com as almas penadas.
Não saia mais, no entanto, trabalhadora como era, começou a passar as roupas durante a noite, indo até de madrugada, ignorando o fato de que Deus havia feito o dia para o homem trabalhar e a noite para o trabalhador dormir, descansar e as almas penar, vaguear, em busca da redenção de seu pecados e paz eterna.
Em uma noite de sexta-feira 13, enquanto Maria estava passando roupa, com a janela aberta, como sempre fazia, para amenizar a temperatura do ambiente, aquecida pelo uso do ferro a carvão, ela começou a ouvir barulho de rezas e cânticos religiosos, vindo de bem longe e aos poucos se aproximando, ficando cada vez mais alto.
Maria olhou no relógio da parede, faltavam pouco menos de cinco minutos para a meia noite e curiosa, foi até a janela para ver do que se tratava, quando viu uma grande procissão com tantas pessoas que parecia não ter fim a multidão, todas vestidas de branco, que ficava mais alvo pela luz do luar.
Todas pessoas carregando velas e a medida em que se aproximavam, o som das rezas e hinos ficavam mais altos, mas Maria, não conseguia entender o que estavam rezando ou cantando, por mais que se esforçasse, pois sabia de cor todas a canções de sua igreja.
Então, ela sentiu um arrepio começando na espinha e percorrendo seu corpo todo, pois de repente, percebeu que aquilo era coisa do outro mundo, pois notou que a procissão estava vindo da direção da igreja assombrada, indo no rumo do cemitério.
O relógio da parede bateu meia noite, no momento em que, de súbito, uma mulher, saindo do meio da procissão, andando com dificuldade, se aproximou dela e disse:
— Estou me sentindo muito cansada de tanto caminhar segurando esta vela tão pesada.
Maria ficou sem saber o que dizer, dado a surpresa do momento e a mulher continuou:
— A senhora poderia fazer a gentileza de segurar esta vela, que depois eu venho buscá-la de volta.
Pediu a senhora gentilmente, quase suplicando, entregando uma vela acessa à lavadeira, para que ela segurasse, sem conseguir pensar direito, automaticamente, estendeu a mão e a pegou, e ao segurar o círio, este se apagou imediatamente, se transformando em um grande osso, mais precisamente, num fêmur humano.
Aterrorizada, sem conseguir entender direito o que estava acontecendo, sem saber o que fazer, se movimentando por impulsos, fechou imediatamente a janela, colocou o osso em cima da mesa em que estava passando as roupas, arreou o ferro de passar no chão, sem apaga-lo e foi para seu quarto rezar contritamente em favor das almas penadas do purgatório.
Passou o resto da noite, praticamente, em claro, quando o sono chegava, era despertada pela visão apavorante do enorme fêmur humano em suas mãos, ela estava tão apavorada, com a súbita aparição, que nem prestou atenção se a procissão desapareceu, ou se ela seguiu seu percurso normalmente.
Na manhã seguinte, mal o sol nasceu, maria se levantou, ainda atordoada, pelos acontecimentos noturno, correu até a sala, para comprovar que tudo aquilo não passara de um tremendo pesadelo e nada mais, no entanto, ao olhar para a mesa de passar, seus olhos fitaram o fêmur, no mesmo lugar que ela havia deixado, comprovando a malfadada realidade.
Bastante preocupada, acreditando que algo de muito ruim poderia lhe acontecer, Maria pensou em procurar um padre para contar o que estava acontecendo, se confessar e pedir conselhos e orientações, mas se lembrou que teria que ir justamente na igreja da “Missa dos Mortos” e então pensou em outras soluções.
Depois de refletir por um bom tempo, chegou à conclusão que ao invés de se aconselhar com um sacerdote, seria melhor, buscar ajuda de um famoso “pai de santo”, morador antigo e experiente nessas coisas de alma penada e vidas de outro mundo, conhecido por sua sabedoria e conhecimento espiritual.
E raciocinando assim, a lavadeira, mais que de pressa se aprontou, pegou o fêmur, depois de alguns instantes parada com ele nas mãos, ponderou, e achou melhor não levar o osso humano, pois não sabia se poderia tirara-lo de dentro de casa e o que poderia acontecer se assim o fizesse, se dirigiu com toda pressa à casa do “pai de santo”.
— Bom dia, “babá”. – Disse Maria ao ser recebida pelo babalorixá.
— Bom dia. – Disse ele, abrindo a porta para que ela pudesse entrar.
— Desculpe incomodá-lo tão cedo, mas é que aconteceu algo muito estranho esta noite comigo.
— Não se preocupe, me conte o que está em seu espírito, a senhora me parece muito aflita, mas antes vamos sentar, para a gente poder conversar melhor.
Após sentados, a lavadeira narrou todo o ocorrido, inclusive sobre o fêmur humano que estava guardado em sua casa.
O babalorixá, após ouvir atentamente todos os acontecimentos, pensativo, olhou serenamente para Maria e em tom grave e com seriedade, disse:
— Maria, a senhora está sendo chamada a atenção e provavelmente será punida por trabalhar à noite. – Revelou, após consultar algumas entidades espirituais.
— Mas porque estou sendo punida, se não fiz nada de errado? – Perguntou a lavadeira.
— Os espíritos, aqui, me dizem que a senhora continua violando o preceito de não trabalhar à noite.
— Mas então, o que devo fazer?
— Olhe, preste bem atenção, a alma que lhe entregou a vela é uma alma penada que está procurando redenção e ela voltará para lhe buscar, uma vez que a senhora não estar respeitando as determinações dos espíritos.
— Mas tem que haver algum jeito de se resolver este problema sem que eu seja levada para este martírio eterno. – Ponderou.
— Sim, tem sim, e a senhora precisa estar preparada.
— De que maneira posso me preparar para me redimir com estas almas?
— A senhora ao sair daqui, vá direto para sua casa, não fale com ninguém, e lá chegando, tranque-se no seu quarto e passe o resto do dia rezando em favor das almas penadas pelos martírios do fogo do purgatório, pedindo perdão por seu erro, prometendo que nunca mais irá trabalhar a noite.
O “pai de santo”, então instruiu Maria a passar o dia todo rezando e pedindo perdão por seu erro e a lavadeira, arrependida, fez exatamente isso, e passou o dia todo em oração, trancada em seu quarto, sem se alimentar, não saindo sequer para beber água, ou qualquer necessidade íntima, num total sacrifício, só saindo próximo da meia noite à espera da procissão.
À meia-noite em ponto a procissão de almas penadas retornou, sempre da direção da igreja das almas rumo ao cemitério, e a alma penada que havia entregue a vela para Maria se aproximou dela novamente, como acontecera na noite anterior.
Mas desta vez, a lavadeira estava tranquila, sentindo o corpo leve, talvez em função do jejum forçado, durante o dia todo de rezas, se preparando para este encontro, já havia pedido perdão e tinha se comprometido a respeitar as regras naturais do universo.
A alma penada olhou para Maria com compaixão e disse:
— Maria, você aprendeu a lição. – E completou – Você respeitou as regras naturais do universo e pediu perdão por seu erro. Você está livre da minha punição.
E com isso, a alma penada pegou o fêmur que de novo se transformou repentinamente em vela e desapareceu, e a lavadeira pôde continuar sua vida com paz e tranquilidade. Ela nunca mais trabalhou à noite e sempre respeitou as regras naturais do universo.
José Fernandes é advogado e jornalista.
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