top of page
Foto do escritorSilvio Carneiro

Samba, amor e futebol até mais tarde | Ori Fonseca


Chico Buarque consolida-se como escritor essencial à literatura brasileira e brinda seus leitores com um livro atraente, de leitura prazerosa e divertida. Bambino a Roma, à guisa de ser um livro biográfico de memórias, é o passeio pelas recordações de um octogenário ao revisitar sua infância em um país distante.



Cursava eu a 7ª série quando me deparo com a letra da canção Travessia, de Milton Nascimento e Fernando Brant na prova de Português daquele bimestre. Uma das questões tinha o seguinte enunciado: “Explique o que o autor quer dizer quando afirma ‘Sonho feito de brisa / Vento, vem terminar / Vou fechar o meu pranto / Vou querer me matar’”. Provavelmente, a professora quisera se referir a Fernando Brant, autor da Letra. Como, infelizmente, em minha vida até ali, e no resto dela, jamais tivera uma conversa com Fernando Brant, eu respondi: “Não tenho como saber”. A professora colocou um imenso X vermelho sobre minha resposta e não me deu o ponto da questão. Escreveu, ainda, com uma letra desenhada e bela (caligrafia), que, se eu soubesse fazer a correta interpretação do texto, teria como saber. Particularmente, perguntei a ela qual seria a resposta correta. Ela me deu uma explicação, e eu perguntei se ela já havia lido ou visto o autor se pronunciar acerca do trecho. Ela respondeu que não precisava porque já estava tudo no texto. Eu devolvi: “então essa é a sua interpretação, não o que o autor quis dizer”. Ela me olhou com um misto de estupefação, ódio e pena, talvez. Mandou-me sentar e que eu me desse por satisfeito em não ter todos os pontos confiscados.


Ora, uma obra literária, sobretudo poética, completa-se no leitor através de seu entendimento particular. O autor, quando pode ser encontrado, se é que pode ser encontrado, nem sempre tem a melhor resposta quanto à interpretação de um texto. Isto porque, segundo vozes da minha cabeça, escritor e autor nem sempre são a mesma pessoa, tenho cá minhas dúvidas se alguma vez o são. Fernando Pessoa é o exemplo mais emblemático dessa pluralidade de autores que podem residir na mente de um escritor. Na prosa de ficção, então, essa distância parece ser mais evidente. Machado de Assis é o escritor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas seu autor é o próprio Brás Cubas. Aliás, é este que faz a dedicatória de suas memórias ao verme que primeiro roeu as frias carnes de seu cadáver. E acrescenta “Eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço”. Estas são palavras claras do autor Brás Cubas, não do escritor Machado.


O mais recente livro do escritor Chico Buarque, Bambino a Roma (Companhia das Letras, 168 páginas, R$ 59,00 em capa dura e R$ 29,90 em e-book), tem como autor um certo Francesco, como o menino Francisco era chamado por seus colegas naquela Itália do pós-guerra, em que fatos históricos facilmente comprovados misturam-se com a ficção, derrubando por terra qualquer pretensão de categorizar o livro como biográfico. Na capa do livro, Chico, o escritor, estampa uma foto real sua, aos dez anos de idade, montado em sua bicicleta niquelada de pneus brancos, mas com a palavra FICÇÃO colocada logo abaixo do título. Essa confusão entre o real e o fictício vai preencher o livro até sua última página, quando um octogenário Francisco revisita sua Itália dos anos 1950, encontrando dela apenas resquícios daquela vida na casa em que vivera por um curto tempo na infância. O escritor faz uso de sua vida, essa "real e de viés", nas palavras de Caetano Veloso, como pano de fundo para as memórias do velho Francisco. A obra é ilustrada com fotos reais do escritor, com fatos também reais de Chico. O pai do menino Francesco é autor de Raízes do Brasil e fora morar na Itália com sua família a convite da Universidade de Roma para ser titular de uma cátedra sobre estudos brasileiros. Francesco também era irmão de uma violonista com quem arriscava uns duetos, iniciando-se na música. Era esta irmã que o bambino, furtivamente, via despir-se para entrar no banho. Ela tinha seus dezesseis anos e muito tempo depois morreu sem saber do voyeurismo do irmão. Seria ela Miúcha? Não importa. As pessoas da família de Francesco não são nominadas. As pessoas de seu entorno não familiar, sim. Alida Valli, atriz (real) do cinema italiano, mãe de um colega seu de escola e por quem il Brasiliano nutria desejos que meninos de dez anos costumam nutrir por mães de colegas. Sandrene, sua amada, para quem escreve um romance que a malvada deixa, literalmente, que o vento carregue. Vinicius de Moraes (realíssimo), amigo de seu pai. E o Amadeo, filho do quitandeiro, seu amigo mais próximo em afeto e mais distante socialmente. É para ele que il Brasiliano deixa a bola que pertencera a nada menos a Ghiggia, o carrasco uruguaio do Brasil na Copa de 1950. Meninos mentem à medida que fantasiam.


Chico já cantou que um personagem seu "faz samba e amor até mais tarde”. Também não se cansa de cantar o futebol. A música, o sexo e o futebol permeiam a obra toda. Francesco é um entusiasta das marchinhas de carnaval e se arrisca a traduzir para o italiano algumas letras. No futebol, é o dono da bola que o bambino jura ter sido de Ghiggia e ocupa lugar privilegiado na frente de uma loja de TVs para assistir à partida entre Brasil e Hungria, na qual o Brasil perdeu por 4 a 2, na Copa da Suíça, em 1954. Ao relatar sua iniciação sexual, o autor narra desde os abusos sofridos de um professor de inglês que, sem que nenhum aluno visse, o bolinava nas vezes que o chamava à mesa, até sua experiência com a danadinha da Grazziela, que o fez debutar no sexo oral por meio de uma tangerina (se alguém já assistiu a O Império dos Sentidos, um clássico do cinema erótico, de Nagisa Ōshimae, e se lembra da cena do ovo, substitua-o, moderadamente, por gomos de tangerina).


“Dessa vez senti um aroma estranho, mais forte, em seguida rocei a língua na fina membrana lateral do gomo, apertei-o de leve, e as gotículas que dali emanavam sabiam mais à Grazziela que à fruta". 


Então, Bambino a Roma é um livro de memórias? Sim! Memórias do escritor Chico Buarque? Parcialmente! Memórias do autor, Francesco? Sim, se entendermos por “memória” aquilo que nos vem à cabeça quando narramos fatos que presenciamos, sem o compromisso absoluto com a verdade. Isto porque Francesco explica que, muitas vezes, a lembrança cria fatos para melhor ilustrar o que se garimpa da memória.


Achei melhor largar mão da ideia de um diário e deixar que o esquecimento fizesse o seu trabalho. No futuro a imaginação cobriria as lacunas da memória e os acontecimentos reais se revezariam com o que poderia ter acontecido”.


Então, Francesco é Chico Buarque? Não! Mas vai carregar em si muito do que Chico foi e é. Da mesma forma que Brás Cubas não é Machado de Assis, mas que, certamente, carrega algo do Bruxo do Cosme Velho. Machado de Assis, aliás, não saberia dizer se Capitu cometeu adultério em Dom Casmurro. Para saber disso, seria necessário consultar Bentinho, que é o autor da história. Mas Bentinho é contaminado pela cegueira da paixão e também não seria alguém confiável para responder. Caetano Veloso, já citado acima, declarou que todas as suas obras são, de alguma forma, biográficas. E é verdade porque um escritor vai se valer de sua experiência de vida para compor a sua obra. Desapegar-se completamente de si é impossível. Na edição de julho de O ZEZEU, resenhei o romance Feras Soltas, da escritora Lulih Rojanski (https://www.ozezeu.com/general-8-9 ). Lulih é autora de Feras Soltas? Pela minha teoria, não. Os autores são Manuela, Sam e Boni. Mas isso não significa que Lulih não está presente na história. Eu consigo ver a cidade de Macapá, onde Lulih vive, seu quintal com árvores, seus gatos (faz muitos anos que não vou à sua casa, portanto, minha memória pode estar sendo preenchida “com o que poderia ter acontecido”.


Portanto, leitor, se você tiver a sorte de alguma vez encontrar Chico Buarque e conversar com ele, não faça como minha professora da 7ª série. Não pergunte o que o autor quis dizer com isso ou aquilo, ele não saberá responder, pelo simples fato de que não é autor de nada. Ele é apenas a pessoa que segura a pena para desenhar o que o autor, criatura sua e com vontade própria, conte o que tem de contar. Mas se insistir em fazer a pergunta, talvez Chico o oriente a perguntar a Francesco, se conseguir encontrá-lo. Mas o próprio Francesco talvez não consiga dar a resposta, da mesma forma que não soube se expressar como queria quando reencontrou seu amigo Amadeo, que, diante da preocupação tardia do amigo, responde a ele: “Torna al tuo paese, figlio di puttana”.

86 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page