top of page

"Tramontinas" da literatura | por Rafael Senra*

Lulih Rojanski

Existem panelinhas em todos os campos da cultura e da arte, e posso dizer isso porque já transitei em vários desses campos. Mas as panelas mais herméticas e brilhosas, as "tramontinas", muito provavelmente estão no campo da literatura.


Não sou entendido o suficiente para elencar as razões de ser este um campo de disputas tão aguerridas. De todo modo, ainda que o exercício literário não seja tão financeiramente rentável para a maioria dos autores, por outro lado nota-se nesse campo um tipo de prestígio público e um tipo de afago no ego que parece maior para quem publica um livro do que para quem lança um disco.


Não sei comparar se o circuito literário brasileiro é mais competitivo do que o de outros países, mas temos características que ajudam a explicar as panelas de pressão. Somos um país que, apesar de sua proporção continental, tem um número reduzido de leitores, além de pouquíssimas livrarias. E se a farinha é pouca, vocês sabem, alguns grupos farão o possível para garantir o seu pirão.


Há mais de dez anos, fiz movimentos tímidos para publicar minhas primeiras obras literárias, e pude entender um pouco do funcionamento oculto e não declarado desse meio. Demorou para cair a ficha de que a maioria das editoras não analisam originais enviados por email (ou carta), e que, por outro lado, obras indicadas ou que sejam escritas por amigos do editor furam a fila com gosto. Tradicionalmente, é um meio em que homens brancos que participam de circuitos de brotheragem tem mais (e melhores) oportunidades.



Hoje em dia, moro no Norte do Brasil, e é triste ver como autores amazônicos como Vicente Franz Cecim (foto) e Fernando Canto não fazem parte do cânone literário nacional. Talvez sejam citados como nota de rodapé, mas longe do prestígio de autores sudestinos por vezes muito menos expressivos que estes. E reparem que citei dois autores homens e brancos.


Portanto, me parece bem nítido que o cânone possui vários extratos de seleção, vários pré-requisitos que não tem nada a ver com o que realmente deveria importar, que é a literatura. Não adianta acreditar que o calhamaço que você escreveu será justamente avaliado. Muito antes da sua obra, critérios de gênero, raça, classe, idade e regionalismo irão entrar no bojo - e são esses critérios que farão a diferença, mais do que as suas palavras.

Esse dado de exclusão está lentamente mudando, só que essa abertura do cânone não tem ocorrido de maneira natural, mas sim às custas de muita tensão social, gritos, protestos, cobrança pública. Várias editoras já perceberam a mudança nos ventos, e têm divulgado editais de originais que visam equilibrar tais discrepâncias de oportunidade.


Eu acredito que vamos apurar no circuito literário a mesma coisa que aconteceu com o sistema de cotas nas universidades públicas: de início, muita gente achou ruim, mas o tempo mostrou que o desempenho dos cotistas era melhor que o dos não-cotistas. Não há vergonha em chamar um cotista por esse nome; vergonha é perceber que a oportunidade dos privilegiados suplantou o mérito e a equanimidade por tanto tempo.


No caso da literatura, não é novo o fenômeno dos homens que se sentem intimidados e amedrontados pelo sucesso de mulheres (e de qualquer minoria representativa que esses homens considerem estar abaixo do seu extrato social). Deixemos que a psicologia ou a antropologia estudem as causas desse dado, mas, que hay, hay.


O fato é que, hoje em dia, o grande público não é mais tão ingênuo sobre os bastidores dos circuitos artísticos. A internet democratizou o debate público e o monitoramento dessa estrutura. No caso da literatura, a cada dia vejo mais leitores argumentando que desgostaram de uma tradução, que acharam um projeto gráfico meia boca, ou que não gostam de uma determinada linha editorial. Critérios que, em outros tempos, eram conhecidos apenas por uma elite de leitores, provavelmente pessoas da área acadêmica.


Tudo bem que há uma massa de pessoas desconhecendo o que é uma Lei Rouanet, por exemplo. Esses casos são o que chamo de "analfabetismo voluntário": não adianta você dizer que a coisa funciona de maneira X; a pessoa prefere fazer chilique. Entretanto, para além do curral, vejo todo um contingente de consumidores cada vez mais exigentes, não apenas com a qualidade dos produtos, mas com a responsabilidade social, política e ética dos produtores de conteúdo.


Dito isso, acho que temos motivo para sermos cautelosamente otimistas. Por outro lado, ainda há muito, mas muito que precisa ser feito. E o episódio polêmico da Radio Novelo deixa isso bem claro.


*Rafael Senra, além de ser um escritor altamente criativo, é também um talentoso músico e autor de histórias em quadrinhos. Com um doutorado em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora e uma posição como professor adjunto na Universidade Federal do Amapá, Senra é uma figura proeminente que tem se destacado no cenário cultural brasileiro, já tendo sido indicado para o Grammy Latino com seu trabalho de música autoral. Foto: capa e orelha do primeiro romance de Rafael Senra.


41 visualizações3 comentários

3 comentarios


delagnese.alessandra
23 ene

Seu texto traz uma análise aguda e necessária sobre o circuito literário, especialmente no Brasil, onde a literatura ainda é um espaço de disputa intensa e, muitas vezes, de exclusão. Concordo plenamente que as "panelas" existem em todas as áreas da arte e da cultura, mas na literatura, a seletividade parece ainda mais rígida, como um clube fechado onde o prestígio pesa tanto quanto a qualidade da obra.

A escassez de leitores e livrarias no país intensifica esse fenômeno, pois, quando os espaços de destaque são poucos, os grupos que já os ocupam fazem de tudo para manter o controle. E, como bem apontado, essa hegemonia sempre favoreceu um perfil muito específico: homens brancos bem relacionados. A abertura do cânone…


Me gusta

Invitado
23 ene

Adorei a escrita. Precisamos ariar todos os dias essas panelas para que a literatura brilhe sempre.

Ariar: lavar a panela com bombril ou palha de aço para a panela ficar brilhando.

Me gusta

Invitado
23 ene

Que bom que para ajudar os escritores (as) não só a sonhar, mas a realizar temos agora, a editora O Zezeu!

Editado
Me gusta
bottom of page