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Foto do escritorSilvio Carneiro

Água | Luíz Horácio


Alcides escutou calado a atrocidade do dia. O casal de patrões cultivava o hábito de culpá-lo, dia sim dia também, geralmente por alguma atitude sua totalmente fora de propósito. Por exemplo: Dona Joana, arquiteta e apontadora do jogo do bicho na esquina da Rua da Praia com a Dr. Flores, reclamava por que Alcides utilizava muita água para regar aquele interminável jardim.


-Por favor Alcides, veja se molha tudo bem molhado, mas com bem “menas” água, você viu a conta? Nunca pagamos isso, você não está mandando água via sedex para seus parentes em Quixadá, não é? Hoje mesmo fui preparar meu uísque e não tinha uma pedrinha de gelo no congelador, reflete um pouco Alcides, reflete. Promete pra mim que vai refletir. Vou descobrir como é que lavam roupas a seco aí você vai regar esse mato todo a seco. E a conta bem pequenininha. Enquanto isso Alcides, por favor, tenta arranjar água em outra freguesia. Ia esquecendo, logo mais o Joninha - Joninha é o Jonas, pediatra e pedófilo com consultório/cafofo no Menino Deus - vai trazer umas mudas que a bruxa da mãe dele mandou do Japão e de lambuja a velha anexou umas carpas coloridas. Se tem carpa tem que ter lago e se tem lago...caralho!!!!!!!!Vai ter que ter água Alcides. Não quero nem saber, mas quanto “menas” água melhor. Entendeu Alcides?


Alcides enrolou seu chapéu sebento e sinalizou que sim com a cabeça. Não costumava dar às broncas do casal o valor por eles estimado, mas aquela prática já estava torrando seu respectivo saco.


-“Menas” água só se eu regar com urina dra.”


O jardineiro não é daquelas pessoas que se pode chamar de humilde tampouco de arrogante, ele tem um pouco de tudo e de tudo muito pouco. Não gosta muito do gênero humano e as atividades silenciosas têm sua preferência. Mal concluiu o secundário e sempre gastou seu tempo, longe das plantas, lendo. Cedo aprendeu que ser humano, humano mesmo, que se preza é um competidor e ciumento. Do contrário afaste-se, pois você, crédulo leitor, poderá ingressar no duvidoso terreno da espontaneidade e sinceridade. Resumindo, quanto mais um ser humano proferir frases, mais dispensável ele se torna e assim a humanidade cresce e... desaparece. Um parêntese. Acharam estranho o trecho acima? Com certeza você é um dos que falam demais.


Enquanto isso Joninha e Joana tratavam de cuidar daquilo que mais gostavam: trapacear.


Joana construía casas com restos de demolição, unidades baratas e de curta duração, o prazo expirava quando a obra soterrava uma família. Por sua vez Joninha, renomado pediatra, fazia da clínica ponto de encontro de velhos reféns do viagra a fim de uma menininha ou menininho de no máximo 12 anos, tudo regado a jujuba, maconha da mais barata e vinho de garrafão.


Em casa, porém, o rigor:


“Alcides pra que regar a grama se ela só está um pouco cinza?”

“Mas a madame falou que o dr. vai trazer umas mudas e também uns peixinhos japoneses”

“E o que isso tem a ver com a grama ficar cinza Alcides?”

“É que eu pensei no conjunto doutor”

“Conjunto Alcides...conjunto...mas que merda é essa Alcides...quantos anos você tem?”

“Vinte e sete doutor”

“Então você não viveu a época dos Beatles, aquilo sim era um conjunto. Alcides...Alcides...ah!!!!! não amola porra”

“E os peixinhos novos doutor?”

“Esquece, joga no lago sem cerimônia, depois de amanhã já não serão mais peixinhos novos. Tem que economizar Alcides...economizar. Qualquer ser que sobreviva uma viagem do Japão ao Rio Grande do Sul é uma coisa bruta e não precisa de maiores cuidados”

“O doutor  já foi ao Japão?”

“Toma cuidado Alcides...toma cuidado”

                       

Os peixinhos e as plantas demoraram a chegar, mas chegaram. O que era da botânica, era com Alcides e tinha seu carinho. Os peixinhos, dezoito, foram jogados sem a menor cerimônia num lago aberto com carinho de pá e por lá ficaram e.... esquecidos cresceram. Carpa é um peixe forte, mesmo os coloridos, também os japoneses, e o lodo se tornou sua principal fonte de vitaminas combinado com os besouros atraídos pelas luzes que clareavam o jardim.


O tempo que às vezes demora, mas passa, um belo dia trouxe a visita de Camilo, gaúcho do campo e primo de Joana. Alcides fez as honras da casa.


- Buenas

- Boa tarde senhor procura por...

- Não procuro nada índio velho, vosmecê pode avisar a prima que eu cheguei

- Prima!!!!

- A Joana, tchê

- A madame saiu

- Então se achegue pra lá pra que é pra eu passar com as minhas coisas e botá uma chaleira de água pra ferver que erva eu trouxe.

- O senhor é primo mesmo da patroa

- Vosmecê duvida? E o marido dela por onde anda? Tchê, tu tem cara boa, bota a chaleira no fogo e vem prosear, vou te contar uns causos acontecidos com o marido da Joana. Um dia ainda degolo esse filho da puta.


Assustado, Alcides foi cuidar da água.


-Tchê, quando a água chiar tu apaga o fogo. Não pode ferver. Vou só botar umas bombachas mais frescas e vou praí cevar o mate.


Camilo trocou o figurino, mas, conservou  a faca, que não era das menores, na cintura.


- O senhor está melhor, não quer tomar um banho?

- Tá me achando sujo seu merda, já me cheirou?

- Não, não, é que o senhor podia se sentir melhor, mais fresco e...

- Fresco pode ficar o teu pai, filho da puta. Vamos fazer um trato: tu não te mete comigo, não te fresqueia, vai cuidar da tua lida que eu não te peço nem fósforo. Tá demorando a Joana não é mesmo?

- Fique a vontade seu...seu...

- Camilo, Camilo Machado seu criado


Aproveitando a ausência da patroa, Alcides dessedentou o universo verde à frente da casa e a noite o surpreendeu com o cheiro forte do palheiro de Camilo.


-Que cheiro é esse dr. Camilo?

-Não sou doutor merda nenhuma tchê e se tu quer saber tenho pavor dessa gente, se me chamar dessa merda novamente te passo o relho.

-O dou...o senhor é que manda, mas que cheiro é esse seu Camilo?

-É fumo tchê. 


E mostrou a concavidade da mão esquerda onde aconchegava o fumo recém desfiado, a mão direita segurava o fiel punhal.

 

O portão automático abre, chega o dr. Jonas. Alcides vai ao encontro do patrão enquanto Camilo permanece entre o chimarrão e o palheiro.


- Boa noite

- Buenas

- Então o senhor está esperando a Joana

- Que conversa mole é essa de senhor tchê, tá te fazendo de salame, não tá lembrado de mim seu bosta, se continuar fingindo te dou uns planchaços pelo lombo que te refresco as idéias. Vem, vamo entrando, minha prosa é contigo mesmo.

- Dá pra apagar esse cigarro fedorento pelo menos?

- Vosmecê é mesmo homem muito mal educado, por acaso te proibi de fazer alguma coisa lá na fazenda? Fala seu merda, fala.

- Não, não proibiu nada...nada

- Então tá tudo certo. Tem canha ?

- Canha?

- Cachaça, tchê.

- Tem vinho

- Traz.


Alcides fazendo as vezes de mordomo.


-E então, o que você quer falar comigo

- Ô Alcides, por que tu não trouxeste um copo pro doutor?

- É que o doutor a essa hora costuma beber uísque e uísque é servido em outro copo.

- Ah então eu também quero uísque


Alcides repetindo o papel de mordomo


- Bem agora você pode dizer o que o trouxe aqui.

- Vim pra esclarecer uma história que se sucedeu com o filho de um amigo meu aqui da cidade, um gurizote de uns onze, doze anos que foi se consultar com o doutor nojento que tá na minha frente, mas já já vai pra longe, pra bem longe

- Não sei do que você está falando.

- Já vai saber. Ô Alcides, vem cá.


Alcides veio. Joana irrompe na sala.


- Buenas prima

- Camilo !!!!!


Sorrateiramente Jonas ensaia uma saída estratégica


- Tá indo pra onde, primo?      

- Só levantei pra dar uma esticada nas pernas


Joana jogou sua bolsa sobre a mesa de centro, o que desviou a atenção dos homens.


- Mas então primo, o que te trouxe à cidade e....hum...hum...que cheiro estranho

- Vosmecê nunca reclamou do meu cigarro, já tá com essas frescuras também

- Não, não tem nada a ver com seu cigarro é...é... É GRAMA MOLHADA...Ô ALCIDES.

- Pois não pa..

- Pois não é o caralho, seu escroto nojento, esbanjador de água, quem te mandou molhar o jardim seu viado?

- Eu achei que...

- Agora você deu pra achar. Jonas, Jonas você não diz nada?

- Não, ou melhor, preciso ir ao banheiro.


Eu te acompanho tchê. E não é nada disso não prima é que tu atalhaste nossa prosa.

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